Apêndice: carta de foro e foral

 “CARTA DE FORO” E “FORAL”


1

 De diversos modos aparecem designados desde o século XI até às primeiras décadas do século XIV, isto é, durante o período em que foram outorgados, quase na sua totalidade, os documentos a que actualmente chamamos forais.

O mais vulgar até ao fim do século XII – e a mesma prática manter-se-á em vários documentos do século XIII – é chamar ao documento simplesmente “carta”, enquanto se refere ao seu carácter externo, à sua realidade diplomática; e referir o seu conteúdo, isto é, o conjunto das disposições e normas nele contidas, como “foro” ou “forum”.

Convém, no entanto, observar que o termo “foro” ou “forum” aparece repetidas vezes, em muitos desses e em outros documentos, aplicado também a realidades diferentes, significando ora o conjunto das prescrições contidas no documento, ora as taxas das portagens, ora o estatuto social e jurídico de uma determinada classe, ora, finalmente, as rendas a pagar sobre as propriedades rústicas ou urbanas, e, dentro desta acepção, muito especificamente, a importância fixa ou “cânone” a pagar anualmente pelo domínio útil das terras, como sucede nos contratos de enfiteuse ou emprazamento, também chamados de aforamento. Assim, por exemplo, se no foral de S. João da Pesqueira "forum designa o próprio diploma (“Istud vero forum firmavit rex domnus Fernandus”), no foral de Évora, de 1166, encontramos “forum” a designar o conjunto das disposições que integram o foral (“Damus vobis forum et costume de Avila”), o imposto das sisas ou portagens (De portagem: foro de trosel de cavalo, de panos de lana vel lino, I solidum”), o estatuto próprio de uma classe (“si miles per naturam ibi perdiderit equum et recuperare non potuerit semper stet in foro militis”), enquanto no foral de Aguiar da Beira [1157-1169], entre outras, se lê esta passagem: “pedon vendat suam proprietatem ad quem voluerit et decimam restet in foro”, onde “foro” designa o imposto da décima que recai sobre a propriedade. Não se esqueça que nesta época nem sempre é fácil distinguir aquilo que hoje chamamos foral de um simples contrato de enfiteuse, não só por causa da imprecisão das fórmulas notariais, mas também por falta de clareza na distinção entre os direitos individuais de propriedade e o domínio político.

Os notários ou, de um modo geral, os escribas dos séculos XI e XII não tinham uma designação precisa reservada às cartas de foral e por isso aplicam-lhes as mesmas com que referiam os outros documentos. Tais designações têm muito a ver com a imprecisão ou a versatilidade das fórmulas notariais da época, com os hábitos e tradições dos scriptoria ou da chancelaria onde foram elaborados tais diplomas.

A umas está subjacente o aspecto externo ou o suporte material do documento, outras traduzem a sua força vinculativa, a sua eficácia, outras referem-se ao seu conteúdo.

 

1.1. A designação mais simples com que se apresentam alguns forais é, já acima referimos, a de carta ou cartam (Sernancelhe, 1124; Valezim, 1201). Numa passagem do primeiro foral de Melgaço, acrescenta-se uma segunda palavra, quase sinónima: cartam et scriptum. Associado à palavra cartam aparece o vocábulo scripturam, nos forais de Numão, em 1130 (“facimus vobis cartam sicut et fecimus per scripturam”), e de Freixo de Espada à Cinta, em 1152 (“facimus cartulam sicut et fecimus per scripturam).

1.2. A carta de foro de Covas, em 1162, numa passagem que tem paralelo nas arengas de outros documentos da época, teoriza assim o valor do documento escrito: “Magnus est enim titulus donationis in qua nemo potest actum largitatis inrumpere neque foris legis projicere sed quicquid libenter amplecti. Denique lex canet gotorum ut rem donatam si presentibus tradita fuerit nullo modo repetatur a donatore sed per testes et per scripturam convincit”. A redução a escrito de um acto de doação tornará perenes as irrevogáveis cláusulas de doação nele contidas. Por isso mesmo é que os municípios medievais guardarão com todo o empenho os pergaminhos que definiam as suas liberdades e privilégios e, quando, por algum acidente, os documentos antes em sua posse se extraviavam, corriam pressurosamente a solicitar ao rei a pública forma da versão arquivada na chancelaria régia, ou, à falta desta, uma inquirição destinada a exarar por escrito, o mais rapidamente possível, as cláusulas publicamente conhecidas, antes que a sua memória se perdesse. Da importância atribuída aos documentos vêm não só as expressões que em geral acompanham a assinatura – roborare, firmare – e as apocalípticas cláusulas cominatórias, mas também a designação com que se apresentam documentos da mais diversa índole, incluindo muitos dos nossos forais: assim, os forais de Penela (1137) e Arouce (1151) designam-se como cartam donationis et firmitudinis. Com expressões idênticas se qualificam muitos outros:

firmitudinis karta (Fontarcada, 1193);

cartam firmitudinis (Tomar, 1162; Caldas de Aregos, 1183; Valdigem, 1186; Sintra, 1154; Miranda da Beira, 1136);

cartam firmitudinis et stabilitatis (Seia, 1136);

cartam firmitudinis et foro (Valbom, 1203);

cartam et scripturam firmitudinis (Monsanto, 1174);

firmitatis scripturam de bono foro (Viseu, 1123);

cartam [...] fortitudinis et firmitudinis (Arega, 1201);

cartam conventionis et firmitudinis (Ferreira, 1156);

cartam firmitudinis et stabilitatis de foro (Santa Marinha, 1190);

scriptum firmitudinis et stabilitatis ( Seia, 1136);

firmamenti carta (Tomar, 1162);

cartam stabilitatis (Tentúgal, 1108).

 1.3. Pouco vulgar é a designação que aparece nos forais de Ponte de Lima, em 1125 (“decretum facio”), e de Torres Novas, em 1190 (“talia damus decreta”).

 1.4. Em muitos forais, particularmente em vários que foram comunicados de outras terras, usa-se uma fórmula bem simples, que se refere não ao seu aspecto externo ou à eficácia atribuída ao diploma, mas ao seu conteúdo, como sucede, por exemplo, no de Mós, em 1162: “Do et concedo ad populandum (...) per forum de Salamanca”; no de Santa Marta e Viduedo (1202) diz-se: “Damus et concedimus forum de Covilliane”.

1.5. Quando os diplomas incluem já a oficialização do direito elaborado localmente, acrescenta-se a palavra consuetudinem ou costume, como sucede nos forais de

 – Évora, 1166: “Damus vobis forum et costume de Avila”;

 – Centocelas, 1194: “Damus et concedimus forum Covelliane atque consuetudine”.

O foral de Santarém, de 1095, um dos mais antigos em território português, autodesigna-se como “consuetudinis cartam”.

1.6. Desde muito cedo, ao termo carta, referido à realidade diplomática externa, se associa o vocábulo foro, correspondente ao conteúdo jurídico do documento. Curioso, porque muito complexo, procurando recolher quase todas as variantes até aqui referidas, é o foral de Gouveia (1186), que diz “facimus vobis cartulam sicut et fecimus per scripturam et per preceptum nostrum ut firmiter teneatis et habeatis forum bonum"; mas, em regra, utilizam-se expressões mais breves, como acontece no foral de Penacova (1192), onde se lê: “facimus cartam ut habeatis istud forum”.

Por este caminho não era difícil encontrar uma fórmula simples que pudesse ser adoptada para designar especificamente este tipo de documentos. Embora necessitando ainda de ser despojada dos qualificativos, tal fórmula encontra-se já nos forais de Guimarães e Constantim (1096): “cartam de bonos foros”; no singular, achamo-la no foral de Redinha (1159): “carta de bono foro”.

 Da expressão “carta de bono foro” facilmemte se chegaria àquela outra mais simples que gradualmente se generalizará a partir do foral de Leiria, de 1142: carta de foro. Uma dezena de forais, aproximadamente, adoptará esta expressão, até ao fim do século XII, integrada num dos seguintes enunciados:

 – “Hec est carta de foro”: Arganil (1175), Lourinhã (s.d.), Bragança (1187), Guarda (1199);

 – “facio cartam de foro”: Leiria (1142), Germanelo (s.d.), Mortágua (1192);

 – facimus vobis cartam de foro”: Pinhel (1191).


2

 

Ao longo do século XIII, repetir-se-ão quase todas as designações que se aplicaram nos forais do século anterior, como seria de esperar, se atendermos à lentidão com que evoluem as tradições dos scriptoria, ao uso de formulários que se transmitiam de geração em geração e ao simples facto de muitos forais utilizarem outros como modelo ou como referência. Não será até difícil encontrar fómulas híbridas, como estas:

– “facio cartam donationis et firmitudinis de foro”  (Cepo, 1237);

– “facio cartam firmitudinis et perpetui fori” (Vila de  Porco, 1238);

– “facio kartam firmitudinis ad forum” (Mós, 1241).

Estes três documentos são de chancelarias diversas (mosteiro de S. Pedro de Arganil, bispo de Coimbra, chancelaria régia), mas de datas muito próximas.

A fórmula que mais fortuna irá fazer durante o referido século XIII, para designar aquilo a que hoje chamamos forais, será a simples expressão carta de foro, achada já, como vimos, no século anterior. Encontramo-la umas trinta e cinco vezes no preâmbulo dos forais publicados em Portugaliae Monumenta Historica, que, é sabido, abrange apenas, com poucas falhas, os forais outorgados até ao fim do reinado de D. Afonso III. Quando a expressão carta de foro não aparece, usam-se expressões genéricas, aplicáveis a toda a sorte de documentos, ou outras equivalentes, do tipo “do vobis pro forum quod ... “.

Os enunciados em cujo contexto vem inserida a expressão carta de foro são os mesmos que encontrámos no século anterior, com a variante, quando for o caso, de aparecerem em língua vernácula:

– “Hec est carta de foro”: Benavente (1200), Sesimbra (1201), Tabuadelo, Fontes e Crastelo (1202), Souto (1207), Guardão (1207), Penamacor (1209), Contrasta (1217), Alcácer (1218), Touro (1220), Aljustrel (1252);

– “Hec est carta fori et firmissimi pacti”: Proença-a-Nova (1244);

– “Esta he a carta de foro”: Freixiel (1209);

– “Facio cartam de foro”: Vila Nova (1205), Capeludos, Vila Meã e Escarei (todos de 1255), Ferreiros e Melgaço (ambos de 1258), Terena, S. Mamede de Riba Tua (ambos de 1262), Pena da Rainha (1268), Silves (1269), Castro Marim (1277), Loulé, Faro e Tavira (sem datas);

– “Facio cartam de foro perpetue firmitudinis”: Bornes, Sabrosa, Viela e Guilhado (todos na mesma região e de 1255);

– “Facio cartam de foro bono”: Vila Mendo (1229);

   – “Facio carta de foro”: Avelar e Almofala (1221), Tolões de Aguiar (1255);

   – “Facimus cartam de foro”: Vila Chã (1217), Ceides (1217).

 

Aos vizinhos de Padornelos ficou a servir de foral uma sentença régia, proferida na sequência de uma inquirição in loco levada a cabo pelos juiz e tabelião de Barroso, a pedido do juiz de Padornelos, que em nome dos referidos vizinhos se dirigira ao rei, porque “ipsi homines de Padornelos perdiderant suam cartam de foro” (1265).

 

3

 

É nas primeiras décadas do século XIV que se generaliza a palavra foral para designar os diplomas que até essa data aparecem referidos com os nomes de carta de foro, simplesmente de foro, ou alguma das designações atrás registadas.

Encontramos a palavra foral nos capítulos especiais apresentados por várias povoações do reino nas cortes de Santarém, em 1331. Nesses capítulos, e com frequência nos mesmos artigos, usa-se ainda, como equivalente, a palavra foro ou a expressão foro e costumes antigos.

No artigo 6.º dos agravos apresentados por Coimbra, dizia-se que “no foral he contheudo que o moordomo faça dereiito pola dezima a aqueles que demandam seus devedores” e solicitam que se ponha cobro uma prática diferente; em resposta, El-Rei ordena “que se aguarde o foro e costume antigo”.

O concelho de Lisboa reclama, porque não é observado o que “no foral he contheudo que todos mercadores naturaes da villa seja recebuda deles e se soldada non quiserem dar que paguem portagem”. Mais à frente, queixa-se de “que recebeu agravamento do mordomo per esta guisa: en o foral he contheudo que todo vezinho de Lisboa que ante seja chamado e ouvydo que penhorado”, mas os mordomos não respeitam esse direito; em resposta, El-Rei “diz que lhi seja guardado seu foro e o que foy custumado antigamente”. A estes dois artigos somam-se outros sete onde o termo foral aparece com o mesmo significado.

Observe-se que em todos esses artigos, na parte correspondente à exposição feita em nome do concelho, se usa a palavra foral, enquanto na resposta dada por El-Rei se continua a empregar o termo foro, o que denota a origem e difusão popular do vocábulo, a cuja utilização a chancelaria régia opõe alguma resistência.

Também nos capítulos apresentados nas mesmas cortes pelo concelho de Sintra, se encontram as duas palavras. No 1.º artigo usa-se o termo foro: “diziades que aviades voso foro em que nos aviam de dar trinta casaaes (...)”; no artigo 6.º usam-se as duas palavras com o mesmo sentido: “outrosy diziades que aviades no vosso foral que as igrejas de vossa terra ca as dava eu a quem era minha mercee e nom aos vossos naturaaes e que vos as aviades d'apadroar estando voso foro”. Noutros artigos dos mesmos capítulos, a exposição dos agravos menciona sempre o “vosso foral”, mas na resposta nunca se diz foro nem foral, limitando-se a frases como estas:

– “veerey a carta e farey o que devo” (art.º 4.º);

– “mando que se guarde o costume antigo” (art.º 7.º  e 8.º).

 Em 1360, no documento através do qual integrou a terra de Valadares no termo do concelho de Melgaço, D. Pedro I lembra as trezentas libras e os outros direitos que o concelho “he theudo de dar a mim em cada huum ano pello seu foral”.

No ano seguinte, o termo foral volta aparecer na resposta dada pelo rei a uns agravamentos apresentados pelo concelho de Montemor-o-Velho: “Item diziam que eram agravados dos porteiros que levavam daquelles que vendiam os porcos na dicta villa a enxercas seis dinheiros de cada huum porco e que foy ja julgado e defeso per sentença que os nom levasem porque acharom que pello soldo que paga qualquer vizinho que pollo foral da dicta villa que diz que todo vizinho que soldo pagar que nom faça outro foro”. Nesta última frase aparecem com significados totalmente diversos os termos foral e foro, o segundo para designar uma determinada taxa ou renda a pagar, e o primeiro para designar o documento onde se fixa um estatuto jurídico, embora de alcance económico. Advirta-se, porém, que a distinção total entre as duas palavras não está ainda feita, bastando, para o comprovar, prosseguir na leitura do referido capítulo dos agravamentos, onde foro é utilizado na mesma acepção de foral: “E porque foy e é defeso que nom levassem os dictos seis dinheiros dos vizinhos em razam dos dictos porcos porque eram scusados per o dicto foro”.

  O caminho era, todavia, irreversível. Num elenco de documentos constantes da chancelaria régia, elaborado na mesma época, mencionam-se já à maneira moderna o “foral de Vilar de Vaquas” e o “foral dos moradores de Vilarinho da Castanheira”.

Se não deixa de ser utilizada, a palavra foro, que, do século XI ao século XIII, incluía também outros significados, correspondentes a realidades que hoje não se consideram abrangidas na categoria dos forais, passa a ter uma acepção cada vez mais restrita, ligada aos contratos de enfiteuse ou emprazamento.

Foral é a palavra que se generaliza gradualmente, desde os começos do século XIV, para referir aquilo que, em termos diplomáticos, do século XI ao século XIII, se chamou, entre nós, foro ou carta de for.