Francos, gauleses, flamengos

Concluiremos este estudo com uma referência ao papel dos imigrantes estrangeiros nas origens do municipalismo português. Tratámos já da intervenção dos comerciantes francos na instalação de burgos mercantis, através da Península Ibérica, durante os séculos XI e XII, movimento que alastrou a Portugal, com importantes consequências sobretudo na área de Entre Douro e Minho e suas redondezas. Aludimos também à participação de migrantes valencianos no povoamento de Sortelha.

Merecem agora uma especial referência os francos, os gauleses (“gallecis”, no vocabulário latino dos tabeliães da época) e os flamengos, que se instalaram nas proximidades de Alenquer, na Atouguia, em Montalvo de Sor e na Azambuja.

Houve várias levas de estrangeiros, vindos do centro da Europa, a povoar algumas das terras recentemente conquistadas. A esse movimento serve de pano de fundo a acção e o espírito das cruzadas, e tiveram decerto um papel importante no seu desenrolar as informações levadas por aqueles que tinham colaborado em algumas das campanhas contra os muçulmanos. Cristianizar as terras conquistadas não era apenas subtraí-las ao domínio dos sarracenos, mas povoá-las de gente que seguisse a lei do Evangelho. Eclesiásticos e guerreiros que tinham vindo para Portugal, com o objectivo de colaborar na empresa da reconquista e na reorganização eclesiástica, procuraram convencer outras gentes das suas pátrias a segui-los para as terras situadas mais a ocidente. Um desses homens foi Guilherme de Cornibus, deão de Silves, que atraiu diversos grupos de povoadores, a que se referem os forais dos francos e dos gálicos de Atouguia e a carta de 1199 sobre a fundação de Montalvo de Sor. Esta carta menciona outros grupos de francos instalados em Sesimbra e em Lezírias, no litoral de Grândola. Alardo dirigiu um grupo de Francos, instalado em Vila Verde, segundo parece, no actual concelho de Alenquer. Por sua vez, Raolino acaudilhava os flamengos a quem foi doada uma Vila Franca (Azambuja), que, aliás, confrontava com outros “francígenas”.

Entre os documentos, a que fizemos referência, os de Azambuja e Montalvo de Sor, por tratarem apenas da atribuição de terras, não fornecem quaisquer elementos característicos sobre a organização destes municípios. Basta dizer que Vila Franca da Azambuja ficava isenta de todas as obrigações fiscais: “liberam ab omni regia exactione et ab omni portagio”.

 

1. Vila Verde dos Francos, 1169.

A mais antiga, de todas as colónias de estrangeiros a que estes diplomas se referem, é a de Vila Verde dos Francos. No breve documento de doação, outorgado em 1169, a D. Alardo, seu pretor, e aos outros francos, e  herdeiros,  D. Afonso Henriques estabelece que “ipsi predicti franci habeant talem forum quale pretor cum ipsis ponere voluerit”. O diploma, originado na sequência desta determinação, viria a ser confirmado por D. Afonso II, em 1218. Através de uma carta de doação de três quartos de Pontével sabemos da existência de francos não só em Vila Verde, mas também na Lourinhã.

1.1. Organização local.

A carta elaborada por D. Alardo e seus homens limita-se praticamente ao foro judicial e, mais especificamente, à matéria penal. Através do texto, conseguimos encontrar muitas referências ao pretor, sobretudo como beneficiário do total da receita proveniente das coimas, ou de uma parte, quando a outra vai indemnizar os lesados. Para ele são também as portagens.

DELITOS E PENAS

DELITOS

          PENAS

DESTINATÁRIOS

homicídio *

1000 soldos     

[½ para os parentes]

rouso *      

1000     »        

[½ para a lesada]

mutilação de um olho

  500     »        

[½ para o lesado]

       »     do polegar   

  200     »        

         »       

       »     de outro dedo 

  100     »        

         »

       »     de um dente   

3 morabitinos

         »

violação do domicílio

 60 soldos     

 

agredir com ferro “moluto”

10      »        

         »

furto

            6   »  **

[3 soldos p/ o pretor]

desmentidos ou outras ofensas verbais

6     »        

[½ para o lesado]

bater, fazendo cair

6     »        

           »

puxar pelos cabelos e deitar por terra

6     »        

           »

agressão à palmada, punho ou pontapé – cada pancada

6     »        

           »

feridas – por cada polegada

6     »  **      

           » 

         »  – por dia de cama

1     »        

           »

» – por dia sem poder trabalhar, mesmo a pé 

1     »        

 

falsificação de medidas ou outra

5     »        

    

        *  Se o autor de homicídio ou rouso, não tiver dinheiro para pagar, determina-se, “suspendatur” (enforque-se).

           O animal que provocar a morte de alguém fica em poder do pretor.

     **  O lesado pode escolher: 6 soldos ou 3 soldos e 9 vezes o valor do furto.

   ***  O autor de ferimentos é ainda obrigado a pagar as despesas  médicas.

 Uma referência aos boni homini e à sua intervenção no julgamento da gravidade das ofensas verbais feitas a alguém, leva-nos a pensar na existência do órgão colegial em que se congregavam, o concelho, jamais referido, e nas respectivas atribuições, que seriam as habituais.

1.2. A justiça.

Para além disso, exceptuada uma norma relativa às heranças, e a determinação de que as punições são aplicáveis somente aos delitos comprovados (“hec omnia debent probari per testes”), quase todo o foral se resume à tabela de coimas e a algumas indicações sobre a sua aplicação.

Delito cometido na presença do pretor tem pena dobrada. Se o lesado quiser exercer a revindicta pessoalmente, perde todos os direitos e fica obrigado a reparar os danos que vier a causar. Quem não acatar as disposições constantes desta carta de foro, é expulso da vila, e, quantos dias permanecer fora, sem se submeter, tantas vezes fica a dever três soldos ao pretor.

 

2. Atouguia, [1186-1195]

D. Sancho assinou dois forais outorgados aos povoadores de Atouguia. A versão de uma das cartas, a dos francos, chegou até nós incompleta, sem a data, e a outra, dos gálicos, tem uma data que não condiz com os restantes elementos cronológicos do documento, que levam a colocar, de qualquer modo, a sua elaboração entre 1186 e 1195.

Entre os forais de Atouguia, a carta dos francos é a mais breve, porque não contém disposições fiscais, privilégio devido à pronta participação dos seus moradores actuais (à data da outorga) na guerra contra os pagãos, já desde os tempos de Guilherme de Cornibus, “leti absque ulla contradictione secundum posse suum”, com as bestas que usavam na almocrevaria e outros animais de carga, para transportar os bens e equipamentos necessários, a qual continua a ser a única obrigação a que se mantêm vinculados.

Por trás destes diplomas está a tradição dos forais da área de Coimbra, que progressivamente foram estendendo a sua influência mais para sul. O próprio diploma expressamente manda seguir, em relação ao homicídio, rouso e furto, a prática dos castelos vizinhos, e, naturalmente, é de esperar que idêntica influência se faça sentir nos outros aspectos. Ora os dois castelos mais próximos, cujo exemplo podia ser seguido – estavam ainda a dar-se os primeiros passos na difusão dos forais de 1179, aliás também tributários, como vimos, da tradição coimbrã – eram os de Leiria e de Sintra.

2.1. Organização local.

A organização municipal em Atouguia é idêntica nas duas comunidades, formadas pelos francos e pelos gauleses. Mas é o foral destes últimos que nos fornece dados mais completos sobre esse aspecto, do mesmo modo que sob o ponto de vista da legislação penal e jurídica, para além de conter uma lista das obrigações fiscais que oneravam os munícipes.

O órgão fundamental na organização da comunidade é, mais uma vez o concelho, integrado pelos boni homini da localidade. Quando o senhor quiser nomear o juiz e o vicedómino (é o nome que se dá ao mordomo), tem de o fazer com o consenso de todo o concelho; o concelho fixa as medidas; ao concelho da vila todos têm de obedecer, e aquele que se insurgir será expulso do município. O pretor desempenha funções policiais, enquanto ao alcaide compete a direcção dos assuntos de ordem militar, pelo menos segundo resulta da leitura do foral dos gálicos, se bem que neste dos francos nos apareça a interferir em assuntos da ordem pública, e mesmo no plural (alcaides), o que pode corresponder já a uma evolução das estruturas do governo local. Menciona-se um outro funcionário subalterno, o porteiro, que executa ordens e faz convocatórias.

2.2. A justiça.

Na administração da justiça, como observámos, adoptam-se as normas fundamentais dos concelhos mais próximos.

DELITOS E COIMAS


DELITO

COIMA

homicídio

como nos outros  castelos vizinhos

rouso

    »       »        »             »            »

furto

    »       »        »             »            »

bater com ferro e ferir

1 morabitino    

bater com punho, pau, pedra e fazer sangue ou inchaço e pisadura na cara ou cabeça

½ morabitino    

desobedecer a convocatória de vicedómino, alcaide ou porteiro

1 soldo         

puxar de arma para fazer mal

perde arma      

ser litigioso e rebelde contra o concelho

expulsão        

mudar limites de herdades

restituir o dobro

homem que diz coisas desonestas que lesam outro homem ou mulher honesta

10 varadas      

mulher que diz desonestidades que lesam mulher honesta

10 chicotadas   

     As disposições penais reduzem-se a pouco: tratamento dos crimes de homicídio, rouso e violação do domicílio, idêntico ao dos castelos vizinhos (cláusula igual na carta destinada aos gálicos), proibição de penhoras sem anterior queixa ao alcaide e execução por um enviado seu, coima de meio morabitino a quem tomar boi ou cavalgadura contra a vontade do respectivo dono, expulsão da vila para quem não obedecer ao pretor e ao concelho.

     Uma particularidade respeita à luta judicial ou “duelo” (pela primeira vez, designado com este nome), estabelecendo sobre os litigantes uma taxa que varia conforme o momento em que a contenda foi resolvida: se os litigantes se entenderem antes de entrar em campo, pagam 4 soldos; se depois de entrar em campo, mas antes de iniciar a luta, 1 morabitino; se a decidirem através da luta, o vencido paga 1 morabitino.

     Um vizinho podia recorrer ao pretor ou ao vicedómino para obter uma penhora de outro, mas, se viesse a verificar-se que a penhora era injusta, ficava obrigado a restituir em duplicado. A fiança a dar ao vicedómino era de dois soldos e meio. De outros aspectos fala o mapa das coimas.

        2.3. Economia e fiscalidade.

     Se, como acabamos de ver, mesmo em relação à lista das coimas, o foral se enquadra na tradição desta área geográfica, outro tanto acontece em relação ao mapa tributário. A tributação das actividades agrícolas segue o critério da jugada, enquanto o vinho e o peixe se taxam em percentagens. A novidade local é a tributação das marinhas, testemunhando a actividade de extracção do sal, que complementa a importância da almocrevaria local, revelada pelo foral dos vizinhos francos. Não se fala em caça, mas tributa-se a matança do porco com o pagamento de um lombo.

Para completar o mapa tributário, registe-se a equivalência adoptada para as medidas: um quarteiro corresponde a 16 alqueires; e um moio, a 32 alqueires.

MAPA TRIBUTÁRIO

DESIGNAÇÃO

TRIBUTO

Agricultura        

 

com 1 boi        

 2 quarteiros (trigo e/ou milho)

com 1 jugo ou mais

 4 quarteiros

com 1 legon  (enxada)    

 2 ½ alqueires

vinho              

 1/16

 »                

 1 almude (“ius vicedomini”, corresponde à lagarádiga)

linho              

 1/16

Pesca

 

peixes             

 1 em cada 20

redes de pé        

 1 peixe

Marinhas (sal)     

 1 moio de 32 alqueires    

Porco              

 1 lombo, depois de cortado no banco

 

          3. Lourinhã [1169-1218].

      A Lourinhã foi colonizada por francos, possivelmente na mesma data ou em data pouco distante daquela em que tal aconteceu também na próxima Vila Verde, outra comunidade que beneficiaria, como vimos, anos depois, da doação de três quartos da herdade de Pontével. O foral apresenta-se como elaborado por D. Jordão, presumível caudilho do grupo de imigrados, com autorização de D. Afonso Henriques, mas pelo contexto se vê que, em datas tão desconhecidas como a da elaboração inicial, sofreu adendas ou desenvolvimentos posteriores, até à confirmação de D. Afonso II, em 1218.

         O texto, em que se descobre alguma influência dos forais de 1179, apresenta várias semelhanças com o da referida Vila Verde, mas é, em diversos aspectos, mais claro e mais rigoroso, sobretudo no foro penal: prevê-se, para o homicida que venha a ser capturado, a pena do enterramento vivo, debaixo da sua vítima, assim como, a seguir ao primeiro e ao segundo roubo, a marcação do ladrão, na fronte, com um ferro em brasa, e, após nova reincidência, o seu enforcamento ("suspendatur").

         3.1. Organização local.

         Em relação à organização do poder local, além do pretor e do porteiro, mencionam-se expressamente o juiz e o concelho, constituído pelos homens-bons, algumas vezes funcionando em pleno (só por decisão do juiz e do concelho, o pretor pode fazer penhoras), bastando porém, para resolver os problemas mais frequentes, a intervenção de um número restrito de três a cinco homens-bons.

         3.2. A sociedade.

      Embora a comunidade se mostre inicialmente aberta à instalação de moradores de outras procedências, acabaria por se vedar a todo o “gallecus” a compra de herdades, e, por conseguinte, a sua fixação na vila.

         3.3. Economia e fiscalidade.

       A não existência de encargos fiscais – ou pelo menos a inexistência de cláusulas tributárias – impossibilita uma tentativa de caracterização da economia local, nesta fase. A referência a animais que podem vitimar-se mutuamente – cavalos e vacas – supõe a existência de manadas nas terras da Lourinhã. Sem lhe atribuir grande peso, prevê-se o exercício da pesca e de actividades semelhantes (naturalmente a caça e algumas formas de recolecção). O abandono das casas ou herdades, por falta de cultivo, implica a perda do direito à sua posse, no prazo de um ano e um dia.

         3.4. A justiça.

Como em Vila Verde, a maior parte do texto deste foral é dedicado aos assuntos da justiça, com particular incidência no foro penal.

Tratam-se com dureza as tentativas de ingerência abusiva na vida dos moradores, por parte de estranhos, e é proibido acolher os inimigos de qualquer vizinho, à semelhança do que expressamente se estabelecia em outros municípios, assim como trazer advogado de fora para intervir em processo dirigido contra algum dos moradores.

Incluem-se normas precisas sobre heranças, nomeadamente quando na altura do óbito não há herdeiros residentes, ou aparecem filhos de barregãs (com direito a receber a herança, ao contrário do que sucede em Vila Verde), e especialmente sobre penhoras – exige-se autorização do juiz e do concelho –, impõe-se limites (se o penhorando tiver bens que correspondam pelo menos a quatro vezes o valor em questão, nunca se lhe toma a casa, o leito ou o cavalo...), a perda dos bens apenas se torna efectiva após o prazo de nove dias, e, de qualquer modo, nunca se efectua se o réu se declarar disposto a fazer o que sobre o assunto determinarem três ou quatro homens-bons –  e até se fixa o prazo (6 semanas) dentro do qual o pretor deve fazer a cobrança das coimas, para evitar que elas caduquem. Não há lugar a coimas, na sequência de rixas entre particulares, quando nenhum dos intervenientes apresentou queixa ou “rancura”. Os vizinhos são obrigados a respeitar as normas de justiça em vigor na comunidade, de tal modo que se, após alguma queixa, se ausentarem, indo morar noutro lado, para não cumprir os seus deveres, não voltarão a ser admitidos na vila.

DELITOS E COIMAS

DELITO

COIMA

Homicídio    

300 soldos e reparação à família; mas, se antes o pretor e o concelho o prenderem, será enterrado vivo sob a vítima

Rouso

300 soldos e reparação aos parentes; mas, se pretor e o concelho o prenderem, justiçá-lo-ão

Mutilações de olhos, braços ou pernas

100 soldos

Outras mutilações

5 soldos

Violação de domicílio  

60 soldos: ½ ao pretor, ½ ao lesado

Agressão, por estranhos  

15 soldos

Furto        

5 soldos ao pretor; 9 x valor ao lesado;

à 1.ª e 2.ª vez é marcado com ferro quente;

à 3.ª, será enforcado (“suspendatur” )

Lançar ao chão

12 soldos: ½ ao pretor, ½ ao lesado

Feridas      

3 soldos por cada polegada

Doestos      

6 soldos: ½ ao pretor, ½ ao ofendido

Puxar de arma

perde a arma      

Abandonar o   marido     

os parentes da mulher tomam os bens desta