Os forais outorgados a partir de 1140, no território a sul de Coimbra,
correspondem, durante mais de duas décadas, à prossecução de uma tarefa de
conquista e povoamento, que prolonga as orientações até agora seguidas na área
do Mondego.
D. Afonso Henriques e os seus homens adquirem novo fôlego
para continuar a ofensiva contra os sarracenos, numa série de campanhas que têm
como principais marcos a conquista de Santarém e Lisboa, e, ultrapassada a
barreira do Tejo, a de Évora e Beja, a que se agregam outras localidades
alentejanas.
Ao início dessa arrancada liga-se, de par com a construção
do castelo, a outorga do foral de Leiria, datado de 1142, e, em data próxima,
do de Germanelo. Segue-se um programa de povoamento e organização do território
situado entre o Mondego e as lezírias do Tejo, traduzido, em parte, na outorga
de alguns forais, e consequente criação de novos municípios.
Novos protagonistas entravam em cena, os Templários,
estando-lhes garantido um papel de relevo na vida e na exploração económica da
região, ao ser-lhes entregue a defesa e a organização do território localizado
na área que ligava o Tejo ao Mondego, acompanhando os vales do Nabão e do
Arunca. O primeiro foral outorgado pelo mestre da ordem do Templo, o de Redinha,
em 1159, segue os paradigmas coimbrãos, mas é o de Tomar que, em 1166,
decalcará à risca o de Coimbra; foi talvez a falta de tradições comuns entre os
povoadores que levou o mestre a acrescentar-lhe, em 1174, uma segunda parte,
outorgando novo documento, que contempla predominantemente aspectos penais e de
procedimento jurídico, como veremos. Separadamente, ou constituindo um só
documento, as duas cartas serão outorgadas a outras localidades situadas na
órbita dos Templários.
Em 1179, o foral de 1111 daria origem a uma nova carta de
foro outorgada a Santarém, Lisboa e Coimbra, e posteriormente a outros
municípios, que se estudarão no momento adequado.
A aparição de um novo foral, em 1179, não impediu todavia
que os modelos anteriores continuassem a servir de referência a diplomas
congéneres outorgados a localidades de menor importância, na região de Coimbra,
tais como Penacova (1192), Abiul (1206) e Avelar (1221), e mesmo a municípios
originados pela fixação de colonos estrangeiros, em Atouguia [1186-1195] e nas
margens do Tejo: Vila Verde de Francos (1169), Azambuja (1200), Montalvo de Sor
(1199).
1. Leiria,
1142.
Embora saibamos que todas estas cartas de foro têm como
antepassados remotos os forais de Coimbra e de Soure, de 1111, não é fácil –
exceptuando os do grupo de Tomar – e é, em regra, impossível, estabelecer-lhes
uma linha de filiação directa. Salvo alguns casos – Miranda do Corvo para
Arouce, Coimbra para Tomar e seus derivados –, a sua geração não se deu através
da reprodução de modelos escritos, diplomas já existentes ou simples
formulários tabeliónicos, mas por via oral e da memória, de um modo bastante
livre, daí resultando que em forais com redacções muito diversas se registem as
mesmas realidades, ainda que à primeira vista pareça que as respectivas
cláusulas nada ou pouco têm de comum. A intervenção dos “vizinhos” ou dos seus
representantes na elaboração do foral dá lugar à introdução de algumas
peculiaridades.
Por essa via, diversos forais outorgados a povoações a sul
de Coimbra, em certas passagens fazem eco de normas e costumes seguidos mais a
norte, nas terras próximas de Viseu. Desse modo, as cartas de foro denunciam a
variegada procedência geográfica de um significativo número dos povoadores,
vindos dos concelhos situados na zona leste do actual distrito viseense, cuja
mobilidade estava com frequência prevista nas respectivas cartas de foro,
quando se garantia aos “vizinhos” a conservação do respectivo estatuto social e
fiscal, mesmo que se transferissem para outra localidade, em algum caso
restringindo-se intencionalmente essa deslocação ao avanço para a frente.
Bom exemplo desta influência é o foral de Leiria, datado de
1142. Nele encontramos cláusulas que repetem ora o foral de Coimbra, ora o de
Seia ou o de Sernancelhe, o de Ferreira de Aves ou o de Miranda do Corvo, e não
faltam as ressonâncias de certas disposições de forais concedidos mais a norte
(Numão) e que reencontraremos no foral de Évora e seus derivados. Algumas
originalidades, se não correspondem a factos novos, traduzem outro modo de ver
as mesmas realidades.
1.1. Organização local.
A nível da organização administrativa local, nada
encontramos de específico: a vida municipal assenta no concelho dos homens-bons
(o termo concelho nunca aparece, mas o grupo dos homens-bons é referido
como a entidade a quem compete proferir o iudicium ou sentença), o saião
actua entre os moradores, e existe um alcaide, a quem expressamente
cabem atribuições ligadas à acção militar (receber os cavalos apreendidos aos
sarracenos e distribuí-los pelos moradores, dando um aos que o tinham perdido e
dispondo dos outros para criar novos cavaleiros), mas não se faz referência a
um juiz, presumindo-se que as respectivas funções judiciais, que ultrapassassem
o âmbito jurisdicional do concelho dos homens-bons, competiriam também ao
alcaide. Distribuiu-se pelo rei e pelo concelho, como em Coimbra, o encargo da
vigilância nas atalaias, enquanto os assuntos do foro eclesiástico são
confiados ao mosteiro de Santa Cruz, na década anterior fundado em Coimbra.
1.2. A sociedade.
Na sociedade local deparamos com os mesmos graus em que,
desde início os moradores se escalonavam, com seu estatuto próprio, na área de
Coimbra – peões e cavaleiros (milites) – assim como a possibilidade
de os primeiros ascenderem à categoria superior, se o desejassem, como já se
dizia em Sernancelhe, mediante a aquisição de cavalo. Distinguem-se, porém – e
isso constitui novidade, pelo menos a nível das referências documentais –, duas
qualidades de cavaleiros: os cavaleiros per naturam (por natureza), que
entram por filiação nesta categoria, e que a mantêm, com o respectivo estatuto
jurídico e fiscal, mesmo que percam o cavalo e, por falta de meios, o não
consigam substituir; e os cavaleiros que, sendo-o não per naturam, devem
essa categoria ao facto de possuirem cavalo, pelo que se o perderem, sem o
conseguir repor no prazo de dois anos, regressam ao anterior estatuto de tributário
(“det rationem”).
Entretanto, o que, no domínio das regalias municipais, se
inovara numa remota localidade, situada no recanto noroeste do futuro distrito
da Guarda (Numão), encontra já repercussões no foral de Leiria: se no município
duriense, para efeitos de justiça, se equiparavam os cavaleiros aos infanções e
os peões aos cavaleiros do resto da país (tal como virá a suceder nos outros
forais aparentados com o de Numão, e com o de Évora e seus derivados), aqui o
cavaleiro (miles) ou o peão são considerados como os “melhores” na respectiva
categoria, em todos os lugares sob jurisdição régia, isto é, as suas
declarações ou os seus testemunhos prevalecem sobre os outros, porque tem
superior qualidade, em igualdade de circunstâncias.
Como na confirmação do foral de Guimarães, de 1128,
estimula-se a fixação de mercadores, concedendo aos que aí se estabelecerem a
isenção de portagens nas terras do rei.
3.3. A justiça.
Enquadrando-se na tradição coimbrã, o foral é parco em
normas sobre os procedimentos jurídicos, que praticamente se restringem a duas:
– proibição de fazer justiça por mãos próprias, sem antes a
reclamar ao concelho;
– fixação do lugar do “medianido”, isto é, do lugar onde
tem lugar o julgamento das contendas que opõe moradores locais a outros do fora
do município, na ponte de Leiria.
DELITOS E COIMAS
|
COIMAS
|
DELITOS
|
|
500 soldos
|
violação
do domicílio, por peões (a coima é paga ao rei; ao lesado, os prejuízos, a
dobrar)
|
|
500
»
|
violação
do domicílio, por cavaleiros (metade é paga ao rei, metade ao lesado)
|
|
500
»
|
homicídio,
entre os rios Iria e Lena
|
|
60 »
|
homicídio,
para além dos referidos rios
|
|
60 »
|
atacar
vizinho com arma de ferro (além da coima, repara os danos causados)
|
|
60 »
|
fazer
justiça por mãos próprias (coima paga ao rei; ao lesado:prejuízos a dobrar)
|
|
20 »
|
agredir
o saião
|
|
10 »
|
luta,
com fins judiciais, por cavaleiros
|
|
5 »
|
luta,
com fins judiciais, por peões (paga o vencido)
|
|
5 »
|
não
comparência de cavaleiro ao apelido (a coima é paga em vinho!)
|
A tabela das coimas contempla os crimes que expressamente
se pretendiam evitar, dando-nos uma ideia da gravidade que lhes era atribuída.
Algumas destas penalidades aproximam-se dos valores fixados
no foral de Viseu, outras do de Seia. A previsão de uma coima para quem
faltasse ao apelido encontra-se já no foral de Ferreira de Aves. A omissão da
coima referente ao rouso não constituiria problema, dada a norma geral de a
equiparar ao homicídio. Note-se a transposição para esta área de um costume até
aqui próprio da Beira interior: a luta como recurso judicial.
1.4. Propriedade, economia e
fiscalidade.
Os moradores de Leiria viviam da cultura do trigo e de
outros cereais de segunda, da cultura da vinha, da caça e da pesca, da recolha
do mel e da cera. Chegam, de fora, os vendedores de peixe, e há ou
diligencia-se para que haja mercadores estabelecidos na povoação, que se
desenvolve a partir do castelo. As presas em terras de muçulmanos consideram-se
também uma normal fonte de receita.
O direito a dispor livremente da propriedade torna-se
efectivo após um ano de habitação no município, tal como sucedia em Ferreira de
Aves e Sernancelhe.
Os foros ou impostos a pagar pelos moradores, especialmente
os respeitantes à actividade agrícola, colocam-se entre os mais baixos valores
que até agora encontrámos, e esse facto explica-se como aliciante a contrapor
às circunstâncias verdadeiramente duras que caracterizaram naquela zona os anos
mais próximos da outorga do foral. Os riscos a assumir só eram assumidos na
expectativa de condições de exploração económica mais atraentes, como a fácil
aquisição do total domínio sobre as terras cultivadas e um estatuto fiscal
menos oneroso.
MAPA
TRIBUTÁRIO
ARTIGO OU
ACTIVIDADE
|
IMPOSTOS
|
Agricultura:
|
|
por cada boi
|
1 sesteiro (aplica-se ao
|
|
lavrador que não possui
cavalo)
|
vinho
|
1 puçal (colheita superior
a 5 quinales)
|
Caça:
|
|
montaria de “zana”
|
1 lombo costal de cada
“veado” (isto é, de cada peça)
|
coelho (desde 1 noite)
|
1 coelho com sua pele
|
Pesca:
|
|
pescador da vila
|
1/10 dos peixes vendidos
|
peixe vindo de fora
|
2 peixes por carga de besta
|
|
1 peixe por carga de
peão
|
Mel:
|
1 almude de mel e
|
|
1 libra de cera (por ano)
|
Comércio:
|
|
mercadores locais
|
isentos de portagens em
toda a terra do rei
|
2. Germanelo
[1142-1144].
Tem múltiplos pontos de contacto com o de Leiria o foral
outorgado, pouco tempo antes ou depois, aos moradores do castelo de Germanelo.
As diferenças entre ambos devem-se naturalmente ao facto de que, enquanto em
Leiria se pretendia incrementar uma povoação de mais ampla projecção no futuro,
em Germanelo apenas havia a preocupação de garantir um número de moradores
suficiente para guarnecer o castelo.
2.1. Organização local.
Assim se compreende que a única autoridade mencionada seja
o alcaide – o da época até assina o documento –, que se reduza ao mínimo o
elenco das coimas (apenas as de homicídio e rouso, cujos quantitativos, porém,
não se fixam) e se cometa aos moradores o encargo de sanarem entre si os
problemas surgidos com outros delitos menores: quando houver feridas, aquele
que as provocou “intret in manibus sui comparis qui feridas iniuste passus
est”; na ocorrência de furto, o autor do delito “ibi solvat calumniam eius”.
2.2. A sociedade.
Por idênticas razões, conservava-se o estatuto fiscal das
propriedades que os moradores possuíssem noutras localidades, e, das herdades
aí cultivadas, os peões apenas ficavam sujeitos ao pagamento da décima, do
mesmo modo que os cavaleiros, da azaga de fossado, contribuíam só com um e não
com dois quintos dos bens apreendidos aos sarracenos, sem contar os cavalos ou
os poldros, que podiam reter, isentos de qualquer tributação.
2.3. A justiça
No afã de atrair moradores, amnistiavam-se todos os delitos
anteriores, incluindo o homicídio e o rouso, aos que aí de novo fossem viver. A
fixação dos lugares de “medianido” não constitui qualquer novidade.
3. Coimbra,
1145.
Pouco tempo depois da outorga do foral de Leiria, dava-se
em Coimbra um acontecimento importante, merecedor de toda a atenção para quem
estuda as origens do nosso municipalismo. Reunidos em assembleia, a 16 de Junho
de 1145, todos os homens-bons (“ab omnibus baronibus bonis”) de
Coimbra, tanto os maiores como os menores, aprovaram as primeiras
posturas municipais de que fala a nossa história. O documento autodesigna-se
como “decretum”, no qual se determina “quemadmodum foros et consuetudines
ad comunem utilitatem omnium civium corrigerent et meliorarent”, e, embora de
iniciativa local, apresenta-se como elaborado “concedente domino rege
Ildefonso”. Pressionava-os de certo a conjuntura económica; é bem possível que
o avanço da reconquista mais para sul tenha contribuído de vários modos para a
subida dos preços, fazendo aumentar a procura e possibilitando a especulação,
fenómeno, por um lado, devido ao aumento dos consumidores, com a passagem de
guerreiros idos das terras mais à norte, e, possivelmente, com a integração de
algumas populações das terras recentemente conquistadas, que não foi
acompanhada de imediato da necessária recuperação da produtividade agrícola e
artesanal, e, por outro lado, fomentado pelo aumento dos meios de pagamento –
não se esqueça o aspecto lucrativo da guerra, testemunhado pelos próprios
forais.
O concelho de Coimbra decidiu pôr cobro a esta
situação, tabelando os preços dos géneros alimentares e dos principais artigos
em venda na cidade, e tomando mais algumas medidas, tendentes a eliminar a
especulação e a evitar estragos nas culturas.
3.1. Organização local.
Estas posturas dão-nos a primeira notícia de duas
importantes instituições, indissoluvelmente ligadas, de futuro, à vida
municipal: a picota e o almotacé.
A picota tornar-se-á o símbolo da justiça e, em
consequência, da autonomia e da liberdade municipal. Para lição aos infractores
e exemplo do público, segundo determinam as Posturas, a ela se amarraria (no
texto diz-se mesmo “suspendatur”) quem não respeitasse quer as tabelas quer as
normas de actuação fixadas no diploma (para além dos cincos soldos de multa que
tinha a pagar). O castigo dos menores de 14 anos, porém, em circunstâncias
idênticas – expressamente referem-se os furtos de uvas e os estragos causados
nas vinhas – era entregue aos pais, que os deviam chicotear até fazer sangue
(“verberetur a patre suo vel ab aliquo parente quousque sanguis fluat ex
costis eius quisquis fuerit”).
Da leitura do diploma infere-se que o texto inicialmente
proposto aos conimbricenses terminava precisamente na cláusula onde se
estabelece a sanção geral a aplicar aos transgressores de alguma das posturas,
de que faz parte a exposição na picota. Mas decerto a assembleia achou bem
ajuntar-lhe as cláusulas do foral de 1111 que mais candentes se mantinham,
actualizando a linguagem e esclarecendo alguma passagem mais obscura, e
introduzindo-lhe duas importantes adendas.
A primeira dessas adendas determina a existência de um almotacé,
previsto, em algumas das cláusulas antecedentes. Este almotacé deve ser um
homem-bom, que não recebe “ofrecione”, e compete-lhe olhar pelo que se passa na
cidade (“qui custodiat civitatem”), verificar as medidas, aprovar as formas
para o fabrico da telha, e fixar o preço dos artigos não tabelados,
especialmente do peixe e do marisco. Como remuneração pela sua actividade, tal
como o juiz, receberá “talem dineiratam qualis per totam vitam currerit
de carne et de piscato”. O almotacé é, por conseguinte, o funcionário a quem
compete zelar pelo abastecimento e bom funcionamento dos mercados, assim como a
inspecção da qualidade e preço das mercadorias. Se este cargo já antes existia
em Coimbra, é a partir de agora que adquire especial relevo, e, com o andar dos
tempos, será criado também nos outros municípios.
A existência do almotacé não colide com a manutenção de
outros cargos públicos, a que as Posturas se referem: juiz, alcaide, adail (adael),
saião, mordomo do alcaide e mordomo da vila. Para evitar que se afastem das
suas funções específicas, devido à ambição dos negócios, aos adaís é proibido o
exercício do comércio (“addael nullus sit emptor ullius rei ad gananciam”).
3.2. Economia: profissões,
artigos e preços.
O documento é valioso até porque nos oferece, através dos
seus articulados, uma interessante e bastante completa panorâmica da vida
económica da cidade, e da época em geral, fornecendo designações, preços e
medidas.
Na cidade havia, além de um mercado, onde se
transaccionavam o vinho, o peixe e outros géneros alimentares, oficinas de
ferreiros, sapateiros, telheiros e oleiros, estabelecimentos de venda de carne
(carniceiros), tintureiros (cardineros), lojas (tendas) onde se vendiam
miudezas (cera, mel, manteiga, queijo, cebo, azeite), e padeiras (alfabezeiras).
Após
a elaboração destas posturas, cavaleiro que se apeasse à porta do ferreiro já
sabia quanto lhe ia custar um par de ferraduras “mozamedes” para um cavalo, e
quanto pagaria pelas de um asno, assim como o preço de um freio ou de umas
esporas estanhadas, do mesmo modo que o agricultor podia deitar contas à vida,
sabendo quanto lhe iam pedir por um ferro de arado, por uma enxada, por uma
sachola (“azeca et seca de vesadoiro”) ou por um sacho, ou mesmo por cada
arrátel de peso de outro utensílio ou objecto de ferro que se mandasse fazer
(“de ferro aguiar quodcumque ferrum fuerit).
Se aos ferreiros competia o exclusivo da compra e venda do
ferro, também os sapateiros tinham o exclusivo da compra dos couros (para
evitar a especulação, naturalmente) e nem eles os podiam vender aos mercadores
de fora da cidade. Por preços claramente tabelados se lhes podia encomendar uma
grande variedade de calçado: bons sapatos untados, em couro de vaca, de zebra,
de bezerro ou de égua, com boas solas (seffiutas); requintados, em pele
de cervo, de cabra, e de carneiro, ou, ainda mais primorosos, de cor vermelha e
de Córdova (cujos couros são famosos), de correia; ou então, mais baratas, umas
boas “avarcas”, e, bem mais caras, umas “osas negras” ou umas sapatas
“phadadas”. E também se sabia o preço das reparações a fazer no calçado: solas
(“suffiutas”) boas, ou menos boas, com ou sem “rostales” (biqueiras, segundo
parece), paga em separado a respectiva aplicação, igualmente tabelada.
Os caçadores, tirada a carne que consumissem, deviam trazer
os animais caçados para vender na “algazaria” (carniceria); podiam também
vendê-los particularmente, mas sem dar lugar à especulação, e pela mesma tabela
da “algazaria”. Os algazares de Coimbra vendiam, a peso, carne de vários
animais: a mais cara era a de cordeiro; seguiam-se a de porco e a de carneiro;
a preços iguais, a de gamo e a de vaca “grossa” (gorda); e, mais baratas e de
igual custo, a de vaca magra, a de zebro e a de cervo. Forneciam também ovos e
animais de pequenas dimensões, sobretudo aves, por ordem decrescente dos
respectivos preços: gansos, grous e abetardas, patos domésticos, galinhas,
coelhos, pombos, e rolas.
O peixe vinha sobretudo do mar, em barcas, mas também por
outros modos, e pescava-se igualmente no rio. Talvez pelo facto de depender em
grande escala do abastecimento externo, e das épocas do ano, não foi
previamente tabelado, mas tinha de ser apresentado ao almotacé para fixação dos
preços.
Em relação às padeiras também não se fornecem preços,
apenas se fixa a correspondência do alqueire (seis arráteis e meio) e se
determina que as fogaças de pão tenham dois arráteis e uma quarta.
Os oleiros faziam cântaros, “quartas cum panella”, “asados”
e “almudes”.
Temos assim uma ideia da maioria dos produtos existentes no
mercado e das tendências do consumo, em alguns aspectos bem diferentes das
modernas.
3.3. Aspectos sociais.
Das cláusulas do foral de 1111 não se incluem as que tinham
já perdido a actualidade, ou as que diziam respeito a um determinado grupo de
pessoas, nesta data em minoria na cidade. Não se menciona a dispensa da
obrigação de fazer a seara do rei, e do maninhádego, o direito a dispor
das suas herdades, ou a distribuição dos encargos com as atalaias, uma vez que
a razão de ser da inclusão destas cláusulas já estava ultrapassada, assim como
a disposição relativa ao fossado, e, de um modo geral, todas as que diziam
respeito aos cavaleiros (milites). Uma determinação relativa aos
clérigos destina-se a evitar equívocos: no foral de 1111, equiparavam-se os
seus privilégios aos dos cavaleiros, e, agora, para que ninguém pensasse que
tinham as mesmas obrigações, declara-se que nunca sejam obrigados a entrar no
exército do rei.
Tinham, ao que parece, plena actualidade as cláusulas que
fixavam os tributos a pagar pelas azenhas, a lagarádiga (e para evitar
questiúnculas, o jantar que, por altura da cobrança desse imposto, quando se
fazia a medição do vinho à saída do lagar, se dava ao mordomo, é substituído
pelo pagamento de três soldos), a que limitava a uma carreira por ano o serviço
em que eram taxados os almocreves, e a que isentava de encargos fiscais os
ibiçãos utilizados pelos agricultores para os trabalhos agrícolas; no domínio
da autonomia municipal, regista-se mais uma vez que Coimbra nunca será dada em
préstamo (“nunquam Colimbria detur per taliamentum”; e, ao nível da justiça,
sublinha-se a obrigação de recorrer ao concelho para exigir o
cumprimento do direito, proibindo que o saião indiscriminadamente vá colocar
nas casas o selo da penhora.
3.5. Indulgências...
Finalmente – é também a última cláusula – o concelho
acha-se no direito de legislar até em questão de indulgências! Naturalmente,
essa é a explicação, não faz mais que incluir no seu “Decretum” uma lei emanada
então da autoridade eclesiástica. Estava-se numa altura crítica da guerra
contra os sarracenos, em que ao esforço de empurrar a fronteira para sul
correspondiam também os ferrenhos ataques das hostes muçulmanas. Para impedir
que a piedosa disposição de ir em peregrinação aos lugares santos da Palestina,
com o intento de obter a remissão dos pecados, diminua o número dos guerreiros,
determina-se que “ninguém tenha licença de ir a Jerusalém, mas que vá em auxílio
dos castelos de Leiria e de toda a Extremadura. E quem aí morrer tenha
remissão dos pecados igual à dos que forem a Jerusalém”.
4. Sintra,
1154.
O foral outorgado aos povoadores de Sintra, em 1154, segue
a tradição do de Leiria, seu antepassado mais próximo, até na multiplicidade de
influências que acusa, sobretudo dos anteriores forais da Beira Alta. A carta
de Sintra representa mesmo o desenvolvimento máximo alcançado pelo foral de
Coimbra, de 1111, numa direcção independente da que levou aos forais de Tomar
(1162 e 1174), e aos de Lisboa, Santarém e Coimbra (1179), dos quais nos
ocuparemos oportunamente.
D. Afonso Henriques doa um casal a cada um dos trinta
povoadores do castelo de Sintra e concede-lhes esta carta de foro, que era, até
ao momento, a mais extensa de todas as desta área. Uma cláusula da parte final
elucida-nos sobre a ponderada política de organização do território então
seguida: os arredores de Sintra estão ainda por povoar (o rei dará um
casal, com as respectivas herdades, a cada um dos moradores do castelo, quando
decidir povoar os arrabaldes). Este pormenor é suficiente para demonstrar que,
numa data em que a população não abundava, o monarca se preocupava em fixar
homens segundo uma política previamente definida e não indiscriminadamente,
onde a sua presença fosse mais oportuna, em ordem à defesa e organização do
território.
O foral de Sintra inclui, no número dos confirmantes, entre
outros, os “princeps” de Coimbra, Santarém e Lisboa, além do arcediago desta
última, sinal de que já se reorganizara a administração civil e eclesiástica da
futura capital, embora o novo foral só apareça dali a vinte e cinco anos. É bem
possível que Lisboa (como talvez Santarém) se governasse por normas que deviam
corresponder às da posterior carta de foro de Sintra, e que só através desta
conhecemos. Deste modo se torna compreensível que uma povoação de trinta
moradores tenha um foral tão elaborado, que ultrapassa em alguns aspectos as
necessidades locais e mesmo uma gestão realista das realidades quotidianas,
designadamente quando se multiplica o número dos moradores que se repartem
pelos vários escalões sociais, que exercem cargos e profissões variadas, e se
fala em atribuir prémios aos cavaleiros (miles) que bem servirem o seu
alcaide ou se alude aos súbditos que os mesmos podem ter dentro ou fora do
castelo. Parece, aliás, que o melhor testemunho da existência de uma carta de
foro em Lisboa está na primeira cláusula da parte dispositiva, em que se diz
“damus vobis XXX.ª casales cum suis hereditatibus in Ulixbona”, onde o nome de
Lisboa era desnecessário, e supérfluo numa zona geográfica tão vasta, para
localizar uma povoação tão conhecida como Sintra, mas possivelmente resultou de
um lapso do escriba, ao servir-se de um formulário que dizia respeito à cidade
das margens do Tejo.
4.1. Organização local.
Segundo o foro de Sintra, a vida municipal baseia-se no
funcionamento do concilio constituído pelos boni homini da
localidade. A este concelho, que vela pela ordem interna (verifica se os
criminosos se emendam), se recorre para fazer justiça, assim como para efectuar
operações de compra e venda. Os delitos de homicídio só se consideram reais,
para aplicação das respectivas coimas, após a “exquiricio”, isto é, o
apuramento da verdade dos factos, feito por homens-bons. Os membros do concelho
envolvidos nas funções da magistratura (“illi qui castellum iudicaverint”)
estão imunes da aplicação de coimas.
Pertence ao concelho escolher, entre os vizinhos, o juiz
e o saião e exonerá-los. O juiz recebe, como remuneração, a décima parte
das coimas devidas ao príncipe, isto é, ao senhor, assim como o saião
recebe a décima parte da importância que couber ao juiz. Em contrapartida são
responsáveis pela defesa dos interesses do “príncipe”.
O alcaide exerce funções específicas de âmbito
exclusivamente militar. Ordena-se-lhe que dê, em cada ano, um prémio (“donum
bonum”) aos militares que bem servirem.
4.2. A sociedade.
A sociedade é constituída por maiores e menores
de várias ordens, a quem o outorgante se dirige no preâmbulo. Na prática, esta
indicação genérica traduz, pelo menos, a existência real, ou prevista, de cavaleiros
(milites), peões (agricultores e caçadores), súbditos de
cavaleiros, clérigos, mesteirais e comerciantes.
Os cavaleiros militarão, uma vez por ano, no
exército do rei, em exclusivo proveito próprio (a guerra surge mais uma vez
como actividade lucrativa); não estão sujeitos ao pagamento de qualquer taxa se
estiverem impedidos de tomar parte no fossado; são obrigados a participar, como
melhor puderem, no apelido contra os sarracenos; e contra inimigos cristãos
apenas até onde puderem ir e regressar no mesmo dia (concretamente, são
obrigados a ir até Lisboa, quando surgirem inimigos do rei com maus intentos).
O prazo para readquirir cavalo, após a perda do anterior, é-lhes alargado até
cinco anos. A viúva continua a beneficiar do seu estatuto fiscal. São objecto
de especial protecção em terra alheia, o que implica a aplicação de graves
penalidades a quem de qualquer modo lhes fizer mal. À primeira vista, parece
que não lhes é atribuída, para fins jurídicos, a equiparação aos infanções, que
encontrámos noutros forais, mas a expressa excepção do rei entre aqueles a quem
são equiparados esclarece que se incluem todos os “milites” de categoria
superior (“Milites Sintrie castello debent testemoniare cum omnes milites terre
regis exceptis regem”). Os peões beneficiam, por conseguinte, de
idêntica promoção (“de pedites similiter”). Dedicando-se à agricultura, estão
obrigados ao pagamento da jugada, mas isentos de qualquer outro imposto.
Aqueles que adquirirem cavalo entram “in honore” (no estatuto de isenção) dos
militares.
Além dos agricultores, prevê-se a existência de caçadores,
recolectores de mel, mesteirais – sapateiros, ferreiros e peliteiros – e
mercadores, estes isentos de portagens nas terras do rei.
4.3. A sociedade.
O foral admite a hipótese da existência de dependentes (subditos)
em casas dos outros moradores (em princípio, dos cavaleiros), no castelo ou nas
herdades, dispondo que não estejam sujeitos a qualquer foro (coimas e impostos)
senão para com os donos das herdades onde habitarem.
Os clérigos que fazem serviço em Sintra gozam das
mesmas prerrogativas dos cavaleiros e não podem ser tirados da sua igreja, pelo
bispo, ou por outro homem, a menos que tal crime cometam pelo qual devam perder
as ordens; devem servir ao bispo, e, em troca, terão ração na sua casa e
receberão uma gratificação (donum bonum) em cada ano.
Original é a fixação do dote de casamento, a dar à mulher
no princípio do noivado, e que o noivo perde se voltar atrás nos seus
propósitos de casamento: uma fusta (vestimenta), umas sapatas, uma cinta, uma
pele, um manto e cinquenta soldos como fiança (garantia) de contrair matrimónio
na igreja (benedictiones).
4.4. Propriedade, economia e
fiscalidade.
Os moradores, passado um ano de posse, adquirem todos os
direitos sobre as suas propriedades, podendo vendê-las e deixá-las em herança
aos seus parentes. No caso de morrerem sem filhos, os bens são repartidos,
destinando-se uma parte à realização de sufrágios pela sua alma, e a outra a
ser entregue aos parentes.
Os
recursos económicos dos habitantes incluem os cereais (trigo e cevada) e o
vinho, cultivados nas herdades dos seus trinta casais, e, em segundo lugar, a
caça aos cérvidas, ao javali e ao coelho, e ainda a recolha do mel.
MAPA
TRIBUTÁRIO
ARTIGOS/ACTIVIDADES
|
FOROS/IMPOSTOS
|
Agricultura (jugadeiros)*:
|
|
com 1
boi
|
1 sesteiro entre trigo
e outro cereal
|
com 2 ou mais bois
|
1 quarteiro
|
vinho
|
1 puçal, de colheita igual
ou superior a 5 quinales
|
Caça:
|
|
com laço ou madeiro:
|
|
cervo
|
1/2 lombo de cada
|
porco (javali)
|
1 costa de cada
|
coelho
|
3 coelhos por ano, com a
pele
|
Mel
(recolector)
|
1/2 alqueire de mel
|
Mesteres:
|
|
sapateiro
|
1 soldo
|
peliteiro
|
1 soldo
|
ferreiro
|
ferrar um cavalo
|
Mercador de Sintra
|
1 soldo (goza de isenção de
portagens nas terras do Rei)
|
* Os jugadeiros não pagam outros impostos.
A proximidade de Lisboa estimulava naturalmente o
desenvolvimento de outros sectores, designadamente do comércio (supondo-se a
fixação de mercadores) e dos ofícios mais difundidos na época, quais eram os de
ferreiro, sapateiro e peliteiro. Esse é o panorama que se vislumbra através do
mapa das obrigações fiscais estabelecidas pelo foral.
4.5. A justiça.
Tratando-se de uma carta de foro que pressupõe a anterior
tradição jurídica da área de Coimbra, e presumivelmente decalcada sobre um
anterior foral de Lisboa, compreende-se que dela façam parte certas normas que,
para a época, representam uma preocupação de justiça e de modernidade, entre as
quais se delineiam as seguintes:
– É ao concelho e não aos particulares
que compete fazer justiça, e por isso penaliza-se qualquer penhora ou retenção
preventiva de bens alheios.
– Ninguém pode ser condenado pelo
concelho, sem haver a certeza da verdade dos factos, e por isso, antes da
sentença final, designadamente no caso de crimes mais graves, como o homicídio
e o rouso, haverá uma prévia “exquiricionem bonorum hominum”.
– Quando um morador tarda a comparecer
ante o concelho, para responder por actos de que é acusado, o saião vai
penhorá-lo, mas não lhe selará a casa onde habita.
– Penalizam-se as agressões feitas ao
juiz e ao saião no exercício do cargo respectivo (embora equívoca, a expressão
“pro intencione principis” refere-se não a um serviço pessoal, mas ao bem
público).
– Em caso de suspeita de homicídio ou de acusação de rouso,
ou outro delito grave, de cuja autoria não há provas directas, recorre-se ao
juramento abonatório de três homens, e nunca mais, excepto em caso de
homicídio.
DELITOS
E COIMAS
COIMA
|
DELITO
|
500
áureos
|
atentado contra o foral
|
10
morabitinos
|
homicídio
|
10 »
|
rouso
|
10 »
|
esterco na cara
|
5 »
|
ferir com arma (lança, espada, faca)
|
1 »
|
adultério publicamente conhecido
|
100
soldos
|
descavalgar, prender ou fazer mal a
cavaleiro de Sintra, fora do termo
|
60 »
|
violação do domicílio (coima reduzida
para menos, se não houver acompanhantes)
|
2 »
|
agressão ao juiz, estando este em
serviço
|
1 soldo
|
agressão ao saião, estando este em
serviço
|
1 »
|
prova ou luta
|
9 vezes o valor
|
furto
|
2 vezes o valor
|
penhora à revelia do concelho
|
perda das armas
|
puxar de armas dentro das muralhas
|
demolir a casa
|
desordeiro incorrigível (ver texto)
|
Os delitos menores não faziam incorrer em qualquer
coima (“de aliis percussionibus factis manu, calce, petra e palo et aliis
intencionibus nulla sit calumpnia excepto supra dictis”), mas, se tal fosse o
caso, sanavam-se com o castigo físico (“qui imprimatur et alium percusserit
accipiat X.cem varancadas”, isto é, “a quem empurrar ou agredir outrem
apliquem-se dez bastonadas”), sempre acompanhado da necessária reparação dos
danos causados (“et postea faciat directum ad illum qui percusserit per suum
forum”). O perturbador incorrigível da paz interna do município (“qui fuerit
firidore, et non se inde voluerit emendare, usque tres vices, per manum
concilii, aut cusculator fuerit”) era, no entanto, considerado indesejável e,
por isso, aplicava-se-lhe a pena de demolição da casa onde vivia.
Entre as práticas herdadas da área nordeste do país,
encontra-se a prova ou luta com a finalidade de dirimir certos
contenciosos pessoais. A realização desta prova tinha de seguir determinadas
formalidades, como aliás em todas as outras localidades onde era admitida.