[1135-1137]
Em data próxima daquela em que outorgava os forais de Seia, Miranda do Corvo e Penela, D. Afonso Henriques confirmava os forais concedidas anteriormente a Ansiães, Sátão, Ferreira de Aves, Viseu e Sernancelhe. Passaremos a analisar as inovações introduzidas na confirmação ou remodelação destas cartas de foro.
1. Ansiães - confirmação
O primeiro foral de Ansiães foi outorgado por Fernando Magno a um conjunto de localidades situadas no Alto Douro, incluindo em primeiro lugar S. João da Pesqueira.
A confirmação de D. Afonso Henriques, que não se apresenta datada, e foi reconfirmada por D. Afonso II, em 1219, refere expressamente várias dessas localidades – Pesqueira, Penela, Paredes, Linhares e Ansiães – mas termina com a delimitação do termo da última, sinal de que visava expressamente este município.
O título de infante usado pelo nosso primeiro rei e a não inclusão ainda do nome da sua futura esposa, D. Mafalda, levam-nos a atribuir a este acto uma cronologia próxima dos forais tratados no capítulo anterior e no presente. O facto da confirmação resulta da incorporação da correspondente área no território sob o domínio de D. Afonso Henriques, e, por conseguinte, a um alargamento da fronteira.
A única novidade desta confirmação é a determinação de que nenhum munícipe seja obrigado a responder perante a justiça “sem rancuroso”, isto é, sem que tenha havido uma queixa contra ele.
2. Sátão – confirmação.
O primeiro foral de Sátão foi concedido pelo Conde D. Henrique, quando, em 1111, aí passou, a caminho do sul, com o objectivo de apaziguar os ânimos exaltados na cidade de Coimbra, e a sua confirmação por D. Afonso Henriques carece também de referências cronológicas.
Em relação ao diploma inicial, a confirmação amplia a autonomia municipal dos zalatanenses, conferindo-lhes o privilégio de escolher o senhor ao qual estarão sujeitos – “non demus vobis seniorem nisi quale vos laudaveritis”, assim como a ter um juiz e um saião escolhidos entre os vizinhos, se não mesmo eleito pelos homens-bons da terra: “et iudice aut sagione de vestra vila et de vestra gente”.
3. Viseu [1135-1137]
D. Teresa assinou a carta de foro de Viseu, em 1123. Em 1187, D. Sancho reconfirmava outro foral, concedido a Viseu por D. Afonso Henriques, em data desconhecida, mas que, pelo seu conteúdo, é de colocar na segunda metade da década de trinta, em virtude dos pontos de convergência com as outras cartas da mesma época e região.
3.1. Organização local.
Quanto à organização do município, o foral afonsino, por um lado, omite qualquer referência ao “vigário” régio, segundo o diploma de 1123, última instância local, em assuntos de justiça, mas, por outro lado, confirma a existência de outras instituições, em relação às quais era omisso o primeiro foral, embora, como referimos, a algumas delas encontrássemos alusões num documento de 1125: o concelho, os homens-bons, o juiz, o saião, o mordomo.
Quem cometer algum delito, vem ou é chamado ao concelho, e é então julgado por um tribunal composto pelo juiz e pelos homens-bons. Interessante é a maneira de convocar um acusado para comparecer no tribunal, apresentando-lhe o selo do juiz: “detur eis sigillum iudicis et veniant ad concilium”. O exercício das funções de juiz, mordomo ou serviçal, é gratuito.
Acidentalmente, é referido o papel do mordomo, como arrecadador de impostos, ao impor-se-lhe que receba apenas metade da “ração” ou do tributo dos jugários empobrecidos, e, para evitar abusos, proibindo-o, tanto a ele, como ao saião, de pôr “caritel”, isto é de fazer penhoras, a não ser com o autor da queixa, e com testemunhas, e sem ultrapassar o valor de cinco soldos. Era, aliás, condição de escolha do juiz e do mordomo ou serviçal, a sua disposição de servir gratuitamente.
3.2. A sociedade..
Em relação aos componentes do agregado social, esta nova carta de foro não introduz qualquer novidade que se possa considerar substancial, para além da expressa referência aos padeiros e sapateiros, somados aos mercadores, estes já presentes no diploma teresiano. A redacção da cláusula “Et de zapatariis et de panetariis et de mercatoribus similiter mandamus”, uma vez que no texto que a antecede nada encontramos que lhe sirva de referência, leva-nos a concluir que o outorgante ou o escriba tinha na frente outro texto, que podia ser o foral de D. Teresa.
As propriedades dos cavaleiros de Viseu, ou as que eles viessem a adquirir, gozavam de isenção, em qualquer lugar do país em que se situassem. Em contraste, até a venda das propriedades dos peões continuava sobrecarregada com uma obrigação que recordava os direitos dominiais sobre ela: o vendedor, com excepção do caso em que alienasse apenas uma parcela por razões urgentes de pobreza, era obrigado a entregar ao senhor a décima parte do preço.
3.3. Propriedade, economia e fiscalidade.
O foral de D. Teresa dizia laconicamente que os colonos que viessem povoar a localidade entrariam “a foro de jugada nova”, sem especificar em que consistia esse foro, que é, com toda a probabilidade, o que agora se encontra aclarado, e devia ser pago no celeiro de El-Rei, segundo a medida de Coimbra:
MAPA TRIBUTÁRIO
ARTIGO/ACTIVIDADE |
IMPOSTO |
1 moio (cereais) |
1 teiga |
vinho |
1/6 |
vinho – lagarádiga |
1 puçal, se colher 3 ou mais moios |
linho |
1/6 |
Esta tabela apresenta a novidade de fazer corresponder a jugada ao rendimento e não à posse de um determinado número de cabeças de gado bovino, como sucedia em todos os forais até aqui estudados.
A jugada entregava-se no celeiro de El Rei, onde a medida utilizada era a de Coimbra. O mesmo artigo em que se fixa o valor da jugada, estipula que pelo alvará se pagará um dinheiro (“et pro illo alvara unum denarium et non plus”): nada esclarece de que alvará se trata.
Introduz-se também o princípio do encabeçamento das obrigações fiscais: quando o pai, ao morrer, deixava no seu casal vários filhos, estes escolhiam entre si qual devia responsabilizar-se pelo pagamento dos tributos, e entregar-lhe-iam a sua parte.
Certas preocupações de índole humanitária, que encontraram eco no foral de Seia, tiveram alguns reflexos neste de Viseu. Assim desobrigam-se do encargo aqueles, provavelmente pobres, que costumavam levar (gratuitamente) a lenha ao palácio. Quando um agricultor caído na miséria ou uma viúva não pudessem cultivar as suas terras e as dessem a granjear, o mordomo só cobraria metade da “ração” ou jugada, deixando-lhes a outra metade.
Há disposições idênticas às de Seia, tendentes a defender a ordem social estabelecida. Confirma-se a posse a todos – cavaleiros, clérigos, mercadores e peões – que tiverem casas ou bens régios situados na cidade. É vedado tomar os cavalos, ou introduzir outros, à força, na casa dos cavaleiros.
3.4. A justiça.
As preocupações com a justiça traduzem-se, além dos aspectos já citados, na inserção de determinações que virão a constituir doutrina geral:
1. Ninguém, seja cavaleiro, clérigo, peão, mercador, homem ou mulher, pode ser preso ou penhorado (roubati, “roubados”, diz, à letra o foral), dentro ou fora da cidade, sem antes ser julgado. O mesmo acontecia em relação ao imposto de justiça – décima – pago pelos condenados em julgamento, apenas “ex quo fuerint capti”, isto é depois do tribunal ordenar a sua detenção.
2. Fixam-se prazos limites para a apresentação de queixas: no caso de rouso, a denúncia só é atendível se for apresentada dentro de nove dias.
3. Exige-se a comprovação dos factos: ainda em caso de rouso, antes da sentença, a verdade terá de ser previamente inquirida.
4. Definição das responsabilidades: ninguém é obrigado a responder por delitos cometidos por filhos, familiares ou servos (mancipii), depois de saírem da sua casa, se a ela não voltaram.
A tabela das coimas é fixada em valores monetários, com excepção da que, recordando talvez um passado recente (lembre-se a introdução que fizemos ao foral de Seia), pune com uma pesadíssima multa o estranho que fizer correrias na terra de Viseu com três ou mais homens armados: é possível que, na versão inicial (o texto, recorde-se, é o da confirmação feita por D. Sancho, em 1187), todas as coimas estivessem discriminadas em géneros, mas, enquanto as outras foram convertidas em moeda, a esta, por ter perdido actualidade, não se deu interesse, deixando-a inalterada.
DELITOS E COIMAS
COIMAS |
DELITOS |
6000 moios |
correr a terra com três ou mais homens armados |
500 soldos |
homicídio dentro da cidade |
300 “ |
“ fora da cidade |
300 “ |
rouso |
60 “ |
violação do domicílio |
60 “ |
usar arma “por ira”, na cidade |
5 “ |
roubar carne à força ou agredir o carniceiro, no decurso da azaria |
30 “ |
luta de cavaleiros, a cavalo, como prova judicial (paga o vencido) |
15 “ |
luta com lança ... |
5 “ |
luta com porra ... |
Além das coimas indicadas no mapa, e também classificável entre os usos mais arcaicos, atenta a sua fixação em género, é a coima ou imposto judicial (iudicato) aplicado àqueles que altercassem, de modo a chegarem a fazer juramento: se o valor material envolvido fosse de 10 ou mais bragais, pagariam um; se fosse inferior a 10 e superior a 5 pagariam apenas meio bragal (subentende-se que não era aceite o juramento para valores inferiores). O pagamento competiria, naturalmente, embora a carta não o diga, ao que se desse por vencido, uma vez que ao juramento se atribuía um valor sagrado, de modo que o homem que não estivesse seguro da verdade se abstinha de o fazer, dando a razão aos seus contendores ou aceitando ser condenado.
4. Ferreira
de Aves
O foral de Ferreira de Aves deve-se a D. Teresa, mas a versão que chegou aos nossos dias, após uma análise atenta, apresenta-se como modificada e ampliada, em relação ao documento inicial, como já anteriormente observámos.
Enquanto em Viseu era fácil analisar a evolução registada entre dois momentos a que correspondem forais diferentes, em Sernancelhe e Ferreira de Aves temos de nos contentar com uma reconstituição baseada em diferentes fases de elaboração de um documento, em que não é inteiramente segura a distinção das partes correspondentes às diferentes épocas, até porque nada nos garante que a “actualização” se tenha feito simplesmente acrescentando um novo texto ao já existente, antes, pelo contrário, é bem possível que em relação a algumas cláusulas tenha havido interpolações ou modificações pontuais, que só em alguns casos se poderão identificar com clareza.
4.1. Organização local.
Em Ferreira de Aves, a organização municipal assenta nos mesmos fundamentos que a de Viseu, com funções idênticas para os respectivos órgãos: o concelho, formado pelos homens-bons, o juiz, o saião. O juiz recebe uma remuneração equivalente a um décimo das multas aplicadas. Não se menciona o funcionário régio a quem competiam as atribuições fiscais, mas, em contrapartida, o concelho recebe metade de várias coimas, e o mesmo aconteceria em relação aos tributos e impostos: o concelho, para evitar a intervenção, sempre considerada non grata, do mordomo, responderia directamente perante a autoridade senhorial, ou perante o delegado régio, pela sua cobrança. Talvez à recusa em exercer os cargos de mordomo ou serviçal se refira aquele artigo que diz: “nullus homo aut mulier non debet ire ad fisco neque intus ad aliquo labore”.
4.2. A sociedade.
Já em capítulo anterior se advertiu, ao aludir-se à composição da sociedade local, que a referência aos ministeriales é de situar na remodelação deste foral realizada a seguir aos meados da década de trinta, o que lhe retira o carácter de pioneiro, atribuído por Luís G. de Valdeavellano. Mais ainda, é que, enquanto nos forais de Seia, de Viseu e de Sernancelhe se prevê ou supõe a fixação dos mesteirais na povoação, no foral de Ferreira de Aves encontramo-los ainda numa fase de itinerância, instalando-se em casa alheias quando estacionam na vila: “respondem” perante aquele em cuja casa estiverem, não sendo ainda expressamente tributados. De resto, sob o ponto de vista da sua composição e estatuto, a sociedade de Ferreira de Aves corresponde, no essencial, ao modelo descrito no capítulo anterior: cavaleiros, peões e clérigos, a que, neste foral, se ajuntam os pastores.
Os cavaleiros têm, como em Sernancelhe, o prazo de três anos para adquirir novo cavalo, após a morte do anterior, ampliam as suas isenções, estendendo-as às herdades que venham a adquirir, e conservam esse privilégio, mesmo se, por iniciativa própria, mudarem de senhor (naturalmente, mudando também de residência), ou se forem “populare in denante”. Num e noutro caso, trata-se de estimular os cavaleiros a participarem com entusiasmo na empresa do alargamento das fronteiras do território, e consequente ocupação das terras reconquistadas, como meio de garantir o seu domínio. Só deste modo se compreende uma outra disposição onde se diz “homo qui tornaverit se pro ad alia terra retro des IIII.ª de pam et de vino et si in denante fuerit habeat toto suo labore” (homem que voltar atrás a outra terra dê a quarta do pão e do vinho, e se for para a frente tenha todo o fruto do seu trabalho).
4.3. A propriedade.
Um passo em frente é dado em relação ao direito de propriedade: conforme uma prática outrora generalizada no noroeste peninsular, segundo a qual quem vendesse uma propriedade, tinha de dar, por essa altura, uma percentagem do preço ou de pagar uma determinada importância ao senhor, gesto que correspondia ao reconhecimento dos seus direitos dominiais sobre a terra, em Ferreira de Aves, nos tempos de D. Teresa, quem vendesse um herdade devia dar meio bragal ao senhor; mais à frente, a carta de foro, no articulado correspondente à remodelação de que nos ocupamos, estabelece uma norma que anula essa antiga disposição, introduzindo o princípio da prescrição a partir de um ano, no fim do qual o direito de propriedade se torna pleno, podendo o detentor de qualquer herdade dispor dela como entender: vender, dar, legar para bens de alma. A defesa da propriedade privada é garantida pela aplicação de coimas a quem a não respeitar, e pela expressa proibição de mesmo os homens ou mulheres do senhor entrarem nas almuinhas alheias.
4.4. Economia e fiscalidade.
A pastorícia devia ter uma expressão bastante significativa, não só por no foral se mencionarem os pastores, mas sobretudo porque isso acontece num contexto onde se trata da violação da propriedade e se refere expressamente a existência de sebes, que se erguiam para evitar que as vinhas e almuinhas fossem devassadas pelos animais, e especialmente pelos rebanhos.
O carácter rural do município de Ferreira de Aves contribuiu para que continuassem fixados em espécies agrícolas os tributos e as coimas. Mantêm-se as disposições relativas aos impostos mais comuns, só que em relação aos caçadores de coelhos se determina que dê coelho aquele coelheiro “de linhas” (modalidade de caça utilizando certo tipo de armadilha que noutros forais, como vimos, se chama também “baraça”) que não der jugada; ora, se já no texto primitivo se taxava a caça do coelho, isto só pode querer dizer, embora com pouca clareza, que os jugários estavam isentos deste imposto, de modo semelhante ao que sucedia em Penela.
4.5. A justiça.
Por influência das regiões vizinhas que tinham foral do grupo de S. João da Pesqueira, dos costumes codificados nos posteriores forais da área de Ribacoa ou mesmo dos costumes atestados noutros forais posteriores com ascendência nos modelos coimbrãos, o foral de Ferreira de Aves contém alguns aspectos que respeitam de um modo especial às instituições relacionadas com a família. Assim, determina-se que o homem que se casar não dê “offrecione” pela mulher; entre o homem e a mulher “ad benedictiones” (de bênçãos, isto é, na linguagem da época, que tenham celebrado casamento religioso) vigora o regime de comunhão de bens, daí resultando a partilha destes ao meio, quando se extinguir o casamento “sive in morte sive in vita”. Quando falece o marido, a mulher não pagará lutuosa. Quando uma viúva com filhos volta a casar-se, o seu novo marido olhará por eles, pelas suas herdades e gados, até que atinjam a idade de assumir essa responsabilidade.
Redigidas em termos diferentes, estão presentes as mesmas preocupações de tornar claras algumas normas judiciais:
– Existência de queixa: “iudice aut sagione non inquirent nulla calumnia nisi quanta venerit ad eos”.
– Prazo para apresentação da queixa: o delito de rouso terá de ser comunicado nos três dias seguintes.
– Delimitação das responsabilidades: ninguém pode ser responsabilizado por furtos (de gado) feitos, na altura em que se vai embora, por alguém que esteve a viver na sua casa.
– A existência de três testemunhas abonatórias e o juramento livram da suspeita de homicídio.
A tabela das coimas aplicáveis aos diversos crimes e delitos é resultante de um conjunto de elementos introduzidos em datas diferentes. Acontece, em consequência, que alguns crimes mais graves são punidos com castigos mais leves: assim, à violação do domicílio correspondia a multa de 60 moios, enquanto para o homicídio e para o rouso se previa uma pena de 50 moios.
DELITOS E COIMAS
COIMAS |
DELITOS |
|
50 moios |
homicídio |
na versão |
50 “ |
rouso |
primitiva |
pena idêntica ao delito |
feridas |
do foral |
perder as armas |
tomar armas contra vizinho |
|
60 moios |
violação do domicílio com ira e violência |
|
10 quarteiros |
violação do domicílio, sem acompanhamento |
|
10 “ |
faltar ao apelido |
|
10 “ |
agredir o saião |
|
1 bragal |
violação de vinha, almuinha e sebe alheia (implica também reparação dos danos) |
|
9 vezes o valor |
furto |
|
5. Sernancelhe
O foral de Sernancelhe foi outorgado por Egas Gosendes e João Viegas, em 1124, mas o estudo do texto confirmado por D. Afonso II obriga a concluir que o diploma inicial foi reelaborado ou acrescentado, aproximando-se de outras cartas de foro redigidas em meados da década de trinta.
As transformações de que se fazem eco os forais outorgados em 1136-1137 e as actualizações, não datadas, de forais anteriores, feitas pela mesma data, encontraram ampla ressonância neste foral da área de Viseu, de autoria não directamente régia ou condal, embora também não estritamente privada, uma vez que os outorgantes deviam ser um o prócere a quem fora confiada a tenência da região e o outro teria recebido dele em préstamo uma circunscrição que total ou parcialmente se identificava com Sernancelhe. É possível que por 1136-1137 João Viegas ainda se mantivesse à frente do território que englobava Sernancelhe, e que portanto as inovações introduzidas, quiçá aproveitando o espaço em branco do pergaminho original, tivessem o seu aval, sem precisar de nova assinatura, o que na época e na região não despertaria qualquer estranheza.
Não obstante os pontos de contacto com homólogos diplomas da mesma época e da mesma região, a nova “recensão” do foral de Sernancelhe contém elementos específicos, que contribuem para um melhor conhecimento da evolução da economia, da sociedade e das instituições municipais, no segundo quartel do século XII.
5.1. Organização local.
A organização municipal assenta no conjunto dos homens-bons, e na existência e actuação do concelho, do juiz, e do saião. Não se faz referência ao mordomo, como em Ferreira de Aves, embora saibamos que o palácio recebe tributos e coimas, mas, em contrapartida, existe um alcaide, que é nomeado pelo senhor.
Pela primeira vez encontramos na documentação municipal uma passagem que esclarece o significado, na época, da expressão homens-bons: “homem-bom” contrapõe-se a “mancipio” e é, por conseguinte, sinónimo de “homem livre”. Ao concelho, formado por estes homens-bons, apresentam-se as demandas que surgirem entre os vizinhos; o concelho escolhe o juiz e o saião.
O juiz, escolhido pelo “concelho” recebe um décimo da “ganância”, ou seja das coimas aplicadas os delinquentes e de outras receitas por ele cobradas, e pode sair, isto é, deixar o cargo, quando quiser. Ao saião, igualmente nomeado pelo concelho, compete intervir na efectuação de penhoras, após o veredicto do tribunal, ou quando o acusado se recusar a comparecer para responder perante a justiça.
Ao alcaide, nomeado pelo rei, não se atribuem outras funções, para além das que lhe competiriam no âmbito da defesa.
5.2. A sociedade.
As alterações sofridas pelo foral de Sernancelhe, além do aperfeiçoamento das instituições municipais, testemunham o enriquecimento do xadrez social com novos matizes, resultantes de um progressivo desenvolvimento económico. Na década anterior a sociedade local era formada essencialmente por cavaleiros e peões, a que se acrescenta o reduzido número dos clérigos e o grupo, relativamente grande, dos dependentes, “mancipii”, existente em todos os municípios das áreas viseense e coimbrã. O peão que tivesse égua ou cavalo e as respectivas armas – e isso já constituía para a época um razoável encargo – era recebido na categoria dos cavaleiros. Note-se que a palavra cavaleiro, como nos forais de Seia, de Ferreira de Aves, e, a partir do meio, no de Viseu, se emprega aqui em vez da mais genérica “miles”, a indicar a introdução de especializações dentro da carreira militar. De facto, referidos com a designação própria (no de Miranda do Corvo, fala-se de “sagitários”), aparecem pela primeira vez, neste foral, os besteiros, cujo estatuto social é equiparado ao dos cavaleiros, e cuja actuação corresponderá, a partir de meados da década de trinta, a uma modificação de extraordinário alcance nas hostes de D. Afonso Henriques. Tirando porém o caso dos guerreiros profissionais – ir à guerra pode ser mesmo uma actividade lucrativa, e, aqui, tal como já vimos noutros forais, paga-se imposto da “ganância” que se obtém com essa actividade, designadamente quando se capturam mouros e cavalos – os sernancelhenses apenas são obrigados a participar em apelido na companhia de El Rei, e de tal modo que em três dias possam ir e estar de volta.
5.3. Economia e fiscalidade.
Outro conjunto de informações importantes que o diploma fornece relaciona-se com o incremento dos mesteres no perímetro do município, referidos como moradores e, por conseguinte, contribuintes: ferreiros, oleiros, conqueiros, peliteiros e sapateiros, a que se ajunta uma outra profissão, que se prevê como de dedicação exclusiva, a de pescador. A lista dos impostos a pagar pelos artesãos diz alguma coisa dos objectos que resultavam da sua actividade:
MAPA TRIBUTÁRIO
PROFISSÃO |
TRIBUTO |
Ferreiro |
5 malhos por ano |
Oleiro |
2 olas (1 grande e 1 pequena), de cada 3 cozeduras |
Conqueiro |
12 entre concas e outros vasos |
Peliteiro |
1/2 manto (1 por cada 2 peliteiros, a que darão de comer, enquanto preparam o manto) |
Sapateiro |
1/2 bragal |
Pescador |
pesca feita durante 2 noites, no rio, dando-lhe de comer (pão e vinho) |
Muitas vezes nos interrogamos sobre quem é o beneficiário destas e de outras contribuições. Normalmente são pagas ao palácio ou ao seu agente, o mordomo, a não ser quando se especifica o contrário. A dúvida surge-nos, e, como em Ferreira de Aves, é mais uma vez o caso, quando não se fez referência ao mordomo e tudo leva a crer que não existe. De facto, e constituindo uma novidade em relação a outros forais até agora considerados, parece que tais funções eram exercidas pelo juiz e pelo concelho (a intervenção do saião para efectuar penhoras, por vezes em alternativa com o mordomo, já é prevista noutros documentos), quando seria de esperar, pelo contexto, uma referência ao mordomo, citam-se apenas o palácio, o juiz ou o concelho. Veja-se a passagem onde se fixam os tributos dos mesteirais – do ferreiro, do oleiro, do conqueiro e dos peliteiros: não se diz qual o recebedor do tributo, mas apenas, em relação aos últimos, que lhes devem dar “vida”, enquanto confeccionem os mantos que constituem esse tributo; logo a seguir diz-se que o pescador deve dar ao juiz o resultado de duas noites de pesca, recebendo em troca apenas pão e vinho para se alimentar nesse tempo, enquanto o pescador dá meio bragal ao palácio. Talvez assim se compreenda melhor aquela passagem onde se diz que o juiz recebe a décima parte da “ganância” em vez de se dizer a décima do “iudicato”, se essa percentagem se referisse apenas às coimas aplicadas aos delitos vindos a julgamento (nada havia a pagar se dois contendores resolvessem em composição o seu litígio).
5.4. O direito de propriedade e a justiça.
Algumas cláusulas deste foral, relacionadas com a protecção ao direito de propriedade e com a justiça social, recordam as do contíguo município de Ferreira de Aves: a proibição de requisitar ou tomar haveres, especialmente animais, aos moradores, de entrar contra a vontade do dono em casa alheia, o direito a dispor das herdades, baseado no princípio da posse de mais de um ano, a necessidade de levar os acusados ao concelho, para os submeter a julgamento, antes de lhe infligir qualquer pena, a interdição de executar penhoras anteriores à sentença e sem as devidas formalidades (era necessária a intervenção do saião), e ainda a dispensa de qualquer “ofreição” ao palácio por ocasião do casamento.
As diferenças são acidentais – o valor da penhora (caução) ou da fiança é de 1 bragal, enquanto em Ferreira de Aves é de 10 quarteiros de cereal – ou então referem algum aspecto que se relaciona com a existência de tradições mais arreigadas: a “prova” ou luta com fins judiciais, que não é mencionada em Ferreira de Aves, mantém-se em Sernancelhe.
A
sobrevivência das tradições locais manifesta-se também no quadro das
penalidades aplicáveis aos vários delitos, onde reaparecem os castigos físicos
– flagelli ou vergatasdas – como punição para certas infracções, embora,
segundo uma tabela que desconhecemos, essas penas pudessem ser convertidas em
multas pagas a dinheiro ou em géneros, pois que, tal como sucede com outras
coimas, se prevê a repartição entre o lesado e o palácio. A lista
original de coimas foi completada com essas e outras especificações
posteriores, havendo um caso – tomar cavalo ou boi alheio – em que se considera
agravante a mais alta posição social do criminoso. Neste quadro é bem clara a
existência das várias fases de elaboração do foral, com diferenças entre certas
cláusulas que algumas vezes, como no caso de furto, é mesmo flagrante.
SANÇÕES PENAIS
DELITO |
COIMA |
DESTINATÁRIOS |
|
homicídio |
50 moios |
½ senhor |
½ concelho |
rouso |
50 » |
» |
» |
agressão com arma |
50 » |
» |
ferido |
mutilação – olho (cada) |
50 » |
lesado |
parentes |
» – mão (cada) |
50 » |
» |
» |
» – nariz |
50 » |
» |
» |
» – orelha |
15 » |
» |
» |
» – dedo polegar |
10 » |
» |
» |
» – dedos (outros) |
5 » |
» |
» |
» – dente (cada) |
5 » |
» |
» |
» – pé (cada) |
[?] |
» |
» |
furto |
9 x valor |
2/9 >senhor |
4/9>lesado |
|
|
2/9 concelho |
1/9 > juiz |
uso indevido de armas |
perde arma |
– |
– |
violação de igreja sagrada |
300 moios |
½ senhor |
½ igreja |
violação de ig. não sagrada |
150 » |
» |
» |
violação do domicílio |
60 » |
» |
dono |
ultraje (esterco no rosto) |
60 » |
» |
ofendido |
mulher que foge com outro |
perda dos bens |
» |
marido |
traição contra o senhor ou contra o concelho |
perda dos bens |
senhor |
traído |
provocação de confrontos irremediáveis com o senhor ou entre os munícipes |
expulsão |
– |
– |
“prova” ou luta judicial (paga o vencido) |
1 bragal |
? |
– |
desistência da “prova”, já em campo |
1/2 » |
? |
– |
penhora sem prévia sentença ou sem presença do saião |
1 » |
? |
– |
furto em propriedade alheia |
1 » e 9 x valor |
palácio |
dono |
tentativa de furto de jumento, cavalo, ou gado |
1 bragal |
» |
» |
tomar cavalo ou boi alheio (se o infractor é homem-bom) |
20 flagelos |
» |
» |
tomar cavalo ou boi alheio (se o infractor é “mancebo”) |
10 » |
» |
» |
por cada ferida causada, na vila ou perante o juiz |
12 » |
» |
lesado |
por cada ferida causada fora da vila |
2 » |
» |
» |
6. Sebadelhe da Serra, Longroiva, Vilarinho da Castanheira.
O foral de Sernanancelhe foi reproduzido pelo de Sebadelhe da Serra, em 1220, e, na versão original, talvez servisse de modelo ao desaparecido foral de Longroiva, que foi o paradigma do de Vilarinho da Castanheira. É provável que este forneça, por conseguinte, a versão mais próxima do diploma inicialmente outorgado a Sernancelhe.