NA REGIÃO DE COIMBRA
Depois de 1135 D. Afonso Henriques fixa-se em Coimbra, com uma interrupção para vir à fronteira norte defender a sua autonomia no vitorioso prélio de Cerneja, nos campos da Límia, – logo aproveitada pelos mouros para se apoderarem do castelo de Leiria, apesar da bravura da guarnição, dirigida por Paio Goterres – e outra vez no ano seguinte, mas desta vez para aceitar o desfavorável tratado de Tui, decerto porque razões ponderosas reclamavam a sua presença na área meridional do território.
D. Afonso Henriques dedica-se aí a múltiplas, embora correlacionadas tarefas: ampliar, com novas conquistas a sul, e reordenar o território, organizar os homens, recrutar guerreiros, estimulando a promoção de peões a cavaleiros vilãos, e sobretudo assegurar o enraizamento de uma população permanente no flanco da mais avançada ala da reconquista.
Desde 1128, ano em que, após assumir as rédeas do poder, confirmou os forais de Guimarães e Constantim, são os forais das áreas de Coimbra e de Viseu os primeiros em que o infante pôs a sua róbora. Trata-se do mesmo quadro geográfico que serviu de pano de fundo a idêntica actividade nos tempos do conde D. Henrique e D. Teresa. Aliás, uma parte dos forais outorgados neste período, por D. Afonso Henriques, são confirmações ou actualizações de diplomas anteriores: Sátão, Ferreira de Aves, Viseu e Sernancelhe – com excepção do primeiro, os outros são os concedido por D. Teresa. Os restantes localizam-se no extremo meridional do território: Seia, Miranda do Corvo, Penela.
1. Seia, 1136
Seia fora doada, por D. Teresa, em 24 de Maio de 1122, “com os seus castelos e vilas”, ao conde Fernando Peres. Anos depois foi objecto de uma investida dos inimigos de D. Afonso Henriques, segundo o testemunho de um documento de 16 de Maio de 1131. Este acontecimento deve inserir-se no quadro da resistência a D. Afonso Henriques, por parte dos antigos partidários de D. Teresa, a qual na parte sul do território se prolongou para além dos acontecimentos de 1128. Seia tinha sido doada ao conde Fernando Peres, do mesmo modo que Viseu fora tenência do seu irmão Vermudo Peres. Seus apaniguados foram os dois rebeldes Aires Mendes e Pero Pais, que entraram em Seia com os inimigos do infante, a quem por isso foram confiscados os bens, doados em seguida ao fiel João Viegas “Ranha”, da linhagem de Baião. A concessão do foral de Seia, em Maio de 1136, assim como a revisão de outros forais da mesma área geográfica virá na sequência destes acontecimentos, e não será apenas um acto ocasional, feito alguns anos mais tarde; a confirmação é, por um lado, uma forma de significar o domínio sobre o território, e, por outro, um modo de fazer alguns ajustes, tendo em conta as novas realidades, as efectivas correlações de forças, em algumas localidades, que tinham, na sua maior parte, foral de D. Teresa, e cujas tenências pertenceram aos “traidores”, enquanto o povo tomaria partido pelo infante: Sátão, Viseu, Sernancelhe, Ferreira de Aves.
O foral de Seia continua a tradição dos forais da região de Coimbra, mas introduz algumas inovações merecedoras de atenção. É também de admitir a inserção de algumas adendas posteriores à data da sua outorga. É clara a diferença de discursos, pelo menos a partir da cláusula onde se trata da reconstrução dos muros da alcáçova: os moradores tomam a palavra, começando a falar na primeira pessoa. Os impostos e coimas, de um modo geral, são fixados em géneros; mas se, nesse contexto, é compreensível que, por excepção, o resgate de um mouro seja taxado em morabitinos, só uma interpolação ou adenda posterior justifica que apenas uma das coimas – ferir com armas feitas de propósito – seja tabelada em soldos. Há pois que admitir neste diploma a existência de um núcleo original, que se foi desenvolvendo posteriormente, com interpolações ou acréscimos, conforme a exigência dos tempos.
Esta observação preliminar destina-se a justificar as cautelas que é necessário ter na leitura do foral, pois nem todo o seu conteúdo corresponderá à data da outorga, em 1136.
1.1. Organização local.
O foral delimita, com referências muito sumárias, o termo do couto municipal, cuja sede administrativa era a vila de Seia, protegida pela sua alcáçova, tão importante, que era necessário zelar pela segurança dos muros, reparando-os ou reconstruindo-os, se necessário, assim como as casas do seu interior – o senhor dava os materiais e as ferramentas (“mozom et luria et marra et malios et II.as lavancas”) e os moradores (aliás, os peões) cediam o trabalho (“nos nostros corpos”).
Acima do concelho, paira a autoridade do rei e do senhor. Nas linhas do foral alude-se ora a um ora a outro (especialmente a propósito da percepção de impostos e coimas), o que resultaria numa grande confusão, se não soubéssemos que El-Rei era localmente representado pelo senhor a quem fora confiada a tenência da localidade.
O senhor, por sua vez, é, no dia a dia, substituído pelo mordomo, ao qual compete tratar, principal mas não exclusivamente, dos assuntos fiscais. Uma só vez se menciona o serviçal, atribuindo-lhe função (ou apenas designação) alternativa à do mordomo (“ante maiordomo aut ante serviçal”).
Também ao meirinho, com este nome, se faz uma única referência, competindo-lhe actividades correspondentes às do saião.
Com o propósito de garantir a isenção dos julgamentos, o foral proíbe a sua realização no interior da alcáçova, assim como a presença do senhor ou do mordomo. É o concelho o garante da paz interna do município, da ordem, e da correcta administração da justiça: numa das cláusulas diz-se “monteiros qui fuerint pro pelles de bestiis adducant illas ad concilium et vendant illas sine nullo meto, et qui plus dederit vadat cum illas et non sedeant pignoratus proinde neque raupatus”; quem praticar um delito deve ser levado ou apresentar-se ao concelho, para cumprir o direito, e não pode ser penhorado senão em consequência de um veredicto do órgão da justiça; esta disposição vale também em relação às mulheres de qualquer posição social, diz-se expressamente, num claro propósito de evitar a sua opressão.
Embora reconheça aos cavaleiros o direito de administrar a justiça aos seus dependentes, dentro dos respectivos domínios, o diploma estipula que, por ausência dos primeiros, será o concelho, em tais casos, o garante do direito.
Como se processa a administração da justiça?
Os julgamentos, pelo menos os dos crimes mais graves, são feitos pelo juiz e quatro homens-bons: “IIII.or homines cum suo alcaide aut iudice”. Diversamente do que a alguém à primeira vista poderia parecer, não se trata de colocar a presidir, em alternativa, dois funcionários – alcaide e juiz – mas de uma só autoridade com duas designações possíveis: alcaide não é, neste caso, sinónimo de um cargo militar (as funções que dentro da alcáçova lhe competiriam são atribuídas ao mordomo), mas significa o mesmo que juiz, sendo uma variante do nome com que noutros documentos da vizinha região da Guarda se designarão os mais altos magistrados locais – os alcaldes. Não teria sentido que os julgamentos se fizessem fora da alcáçova, para preservar a imparcialidade dos juízes, e acabassem por ser presididos pelo militar que a governava.
O foral explicita, com toda a clareza, que a nomeação dos funcionários da justiça – o juiz e o saião – é da competência do concelho. Se em algum caso uma determinada função é indiscriminadamente exercida quer pelo mordomo, quer pelo saião ou pelo juiz, é porque se trata apenas de exigir uma testemunha qualificada, devidamente autorizada para dar legitimidade, com a sua presença, à realização pacífica de um tipo de actos de certo melindre – neste caso, a entrada em casa alheia para a efectuação de penhoras.
1.3. A justiça.
O foral contém diversas disposições tendentes a garantir a paz social e a impedir situações extremas de injustiça. Nesse programa se enquadra de algum modo a explicitação do direito de propriedade privada, dos peões e dos cavaleiros, incluindo a manutenção dos privilégios e isenções após a morte em favor dos órfãos e das viúvas, ou durante os períodos de ausência (até migrando, os cavaleiros podem ser substituídos pelos filhos), quer em relação às habitações e herdades, quer em relação aos animais e aos frutos do trabalho.
Nota-se a preocupação de evitar que a opressão dos poderosos, inclusivamente dos delegados do poder régio, esmague os mais fracos. Com esse objectivo proíbe-se o uso de violência sobre as mulheres, manda-se que sejam remunerados os mesteirais por todas as obras executadas, assim como os guardadores do gado a cargo do mordomo, e do mesmo modo se ordena o pagamento da lenha transportada pelos pobres para a casa dos outros e de todos os trabalhos feitos pelas mulheres pobres; proíbem-se as extorsões, o tomar abusivamente os animais de trabalho aos agricultores e aos mesteirais (oleiros e ferreiros), isentam-se do imposto de jugada os cavões, desobrigam-se do fossado os que pagam jugada, e restringe-se ao mês de Maio essa obrigação por parte dos cavaleiros que não usufruem de algum “préstamo”.
Esta preocupação com a justiça preside a um conjunto de normas jurídicas distribuídas pelo texto do foral, as quais, a partir da mesma década, começam a aparecer com bastante regularidade nas outras cartas de foro:
1 – Ninguém poderá ser preso, nem sequer penhorado, se, após qualquer delito, se apresentar ao concelho para se submeter ao veredicto da justiça;
2 – Nenhum morador será preso se possuir bens ou (supondo que os não possui) se apresentar fiador;
3 – Ninguém poderá ser processado se não houver queixoso: mesmo que o delito seja cometido perante o juiz ou o mordomo (excepção feita naturalmente a um crime de pena maior, qual o homicídio), estes não tomarão oficialmente conhecimento do facto, se os lesados “vocem non mitterint”, isto é, se não formalizarem a acusação;
4 – Os julgamentos não serão feitos na alcáçova, nem em presença do senhor ou do mordomo, disposição tendente a fomentar a imparcialidade da justiça;
5 – Apenas se recorrerá à penhora de bens, quando o incriminado se recusar a comparecer perante o concelho, para se submeter aos ditames do direito;
6 – Fixam-se os lugares onde ocorrerá o medianido, isto é o julgamento dos delitos que envolverem moradores de Seia e dos concelhos confinantes (as contendas com estranhos poderão ser também resolvidas amigavelmente pelos implicados, a meio do caminho, sem intervenção das autoridades);
7 – Estimula-se a pronta liquidação das coimas, isentando o condenado do imposto da décima que sobrecarregaria essas pena;
9 – Atribui-se às igrejas o direito de asilo: se alguém aí se refugiar, as autoridades não podem segui-lo, mas apenas fazer vigilância no exterior do templo.
Como limitação à universalidade destas normas, apontamos o facto de funcionarem, na área territorial do município, dois tipos de justiças diferentes: a do concelho, dita “do rei”, e a dos cavaleiros. A estes pertencia aplicar o direito e receber as coimas correspondentes aos delitos cometidos pelos seus dependentes. Quando o litígio era entre um “homem do rei” e um “homem de cavaleiro”, se este fosse condenado, a coima era dividida a meio, entre o senhor e o rei. A justiça régia – concretamente, o meirinho – apenas entraria nas herdades dos cavaleiros quando, ocorrido um delito de homicídio ou rouso, se pedisse justiça ao respectivo senhor e este se recusasse a fazê-la, ou em perseguição de ladrão de casa ou de “cortinha”, e então dividir-se-ia a coima também a meio, com o dono da herdade onde o criminoso estava.
A tabela das coimas reflecte algumas fases da elaboração deste foral. Assim, inicialmente, o homicídio era penalizado em cem moios de cereal, pena que é depois elevada para quinhentos moios, reservando-se o primeiro quantitativo para quem matasse alguém que estivesse a violar o couto. A maior parte das multas é fixada em géneros (em moios ou quarteiros de cereal, ou em bragal), mas o ferimento com armas (lança, espada, alfange), fabricadas com esse intento, é penalizado com uma importância monetária, o que indicia a interpolação desta cláusula numa data mais tardia.
DELITOS E COIMAS
DELITO |
COIMA |
Homicídio |
500 moios |
“ (de vizinho do couto) |
100 moios |
Rouso |
? (não mencionada) |
Violação do domicílio |
500 moios |
Luta com lança (o vencido) |
15 moios |
Luta com porra (o vencido) |
7 moios |
Bater, até fazer cair |
5 moios |
Punhadas – da garganta para cima |
1 bragal |
para baixo |
½ bragal |
Palmadas |
10 quarteiros |
Feridas com armas... |
30 soldos |
Furto |
9 vezes (o dobro ao lesado e o séptulo ao rei) |
Assimilam-se às coimas as importâncias a pagar pelo litigante que é vencido em luta, travada com objectivos judiciais, admitindo-se duas graduações, conforme a arma empunhada: espada ou porra.
1.3. A sociedade.
No município de Seia vive e trabalha uma sociedade bastante diversificada.
Um lugar de proeminência é reservado, no seio da comunidade, ao senhor a quem fora confiada a tenência de Seia. O foral faz expressa referência a um tal D. Osório – possivelmente o primeiro ou um dos primeiros “tenens” de Seia nos anos próximos da concessão do foral, ainda que o seu nome não figure na lista dos confirmantes. O conde D. Osório aparece em documentos régios da década seguinte, e, a tratar-se do mesmo personagem, a cláusula onde se inscreve o seu nome contar-se-á no número das interpolações posteriores à data da outorga inicial.
Destaque especial é dado aos cavaleiros – registe-se que neste diploma, ao contrário do que sucede com outros, se emprega sempre o termo cavallario (cavaleiro) e não “miles”, possível sintoma de uma especialização de funções dentro do exército, que encontramos testemunhada noutros forais a partir desta época. Entre os cavaleiros diferenciam-se dois níveis: os que beneficiam de algum préstamo, e os que não o possuem, vivendo, naturalmente, apenas dos seus próprios haveres. Estes estão isentos de todo o fossado, que não seja o de Maio, e do apelido.
Além dos privilégios em regra atribuídos aos cavaleiros, nos forais até aqui estudados, e que fundamentalmente se consubstanciavam nas isenções fiscais, o foral de Seia atribui-lhes a jurisdição exclusiva, na área das respectivas terras, sobre os seus dependentes, especialmente em assuntos de justiça.
Esta prerrogativa faz que em Seia, no escalão a seguir aos cavaleiros, se encontrem dois níveis distintos de peões: os homens do rei e os homens dos cavaleiros. Estes dependem apenas dos respectivos senhores. Os “homens do rei” são obrigados ao pagamento de jugada, mas estão isentos das obrigações de ir no fossado ou ao moinho.
Há ainda os cavões, mais pobres, que não têm gado para fazer a lavoura, e que por isso não pagam impostos sobre os rendimentos agrícolas, e pessoas ainda mais indigentes, míseros, que vivem das gratificações que recebem pela execução de tarefas modestas, como a de fornecer feixes de lenha. O foral providencia para que se não pratique a opressão dos mais humildes – e especialmente das mulheres, naturalmente as mais desamparadas –, proibindo que lhes tomem os animais ou forcem a vender os bens, e obrigando a pagar qualquer serviço, como, por exemplo, o da vigilância dos gados a cargo do mordomo.
Embora, como vimos, haja dependentes entre a população de Seia, a escravidão deixa de ser um ferrete transmitido com o sangue, pois o foral determina que os mancipii (mancebos) solteiros sejam de quem quiserem, isto é, que se possam colocar ao serviço de algum cavaleiro, ou que se mantenham inteiramente livres, quer dizer, dependentes apenas da autoridade régia e municipal, e a obrigação de pagar jugada, que se impõe aos homens desta categoria que possuam herdades, corresponde mesmo à proibição de se colocarem sob a dependência de qualquer outro domínio senhorial.
Seguindo a norma já tradicional, os eclesiásticos – os “clérigos da igreja de Santa Maria” – são isentos do pagamento de tributos e da prestação de outros serviços, para além das funções religiosas.
Atendendo à época e à localização geográfica de Seia, não é de estranhar a existência de mouros. E se, em alguma cláusula que parece fazer parte do núcleo mais antigo do diploma, o mouro entra apenas como cativo ou em fuga, em passagem que se afigura mais recente é tratado como um vizinho, a quem inclusivamente se reconhece o direito de dispor dos seus bens em testamento.
Sob o aspecto da composição social, do mesmo modo que a nível das actividades económicas, o foral de Seia é inovador, ao referir-se não só ao comércio, mas também, pela primeira vez, aos mesteirais, e expressamente aos oleiros e aos ferreiros.
1.4. Economia e fiscalidade.
A introdução de novos matizes no quadro social corresponde ao incremento e diversificação das actividades económicas.
Exceptuados os burgos, nos forais anteriores encontramos as populações dos municípios a viver da agricultura, da caça, e, nalguns casos, da pesca, mas no foral de Seia, e logo a seguir em bom número de outros, dá-se um grande relevo a outros sectores, designadamente aos mesteres e ao comércio.
As culturas agrícolas divulgadas em Seia coincidem com as já conhecidas em áreas próximas: os cereais (trigo, milho e centeio), a vinha, o linho, e naturalmente as hortícolas (nas almuinhas). Criam-se animais domésticos: no texto da carta de foro, além dos bois e vacas, e dos cavalos e mulos, encontramos asnos e jumentos, ibiçãos, carneiros e ovelhas, porcos e leitões, e galinhas.
Pratica-se a caça grossa (ao porco bravo e a outros) e a miúda (ao coelho), para obter a carne e as peles, assim como a recolha do mel e da cera.
O mapa dos impostos corresponde a um diversificado panorama económico.
Tal como nos burgos do norte, também em Seia tem expressão fiscal a actividade dos carniceiros, do mesmo modo que o comércio do sal, transportado em cavalo, égua ou asno. Os naturais podem deslocar-se fora do concelho para trazer qualquer mercadoria, sem pagar impostos, até ao máximo de três vezes; daí para cima, há que liquidar as respectivas portagens, especificadas em relação ao sal e à aquisição de animais de tiro, e fixada genericamente na décima em relação aos demais artigos movimentados pelos “troseleiros” ou trouxeleiros.
Mas além do comércio, em que entravam o sal, o mel e a cera, os animais e produtos agrícolas, e os panos trazidos do exterior, há também a produção artesanal dentro da área do município. O foral determina que se paguem todos os serviços feitos pelos ministeriales, que “non faciant nullo servicio nisi pro suo precio”, assim como proíbe a requisição dos ibiçãos, aos oleiros, ou dos cavalos e asnos, aos ferreiros. Os mesteirais são obrigados a cumprir as suas obrigações fiscais, com o seu trabalho: o oleiro fornece um número, não especificado, de vasos (olas); o ferreiro aguça os malhos e repara as correntes ou cadeados, e, desde que lhe dêem a matéria prima, confecciona as ferraduras e os respectivos cravos para o cavalo do senhor. A actividade dos ferreiros era importante para a preparação dos instrumentos necessários ao trabalho da pedra, para o levantamento das muralhas e construção das casas dentro da alcáçova (“si muro cadere et fuerit pro facere que ponat illo seniore mozom et luria et marra et malios et II.as lavancas”), assim como para o fabrico das armas, a que se procedia na localidade (“homine qui in nostra villa facere spada aut lanza aut alfangar pro cum illas malefacere “...).
MAPA TRIBUTÁRIO DE SEIA
ARTIGOS OU ACTIVIDADES |
IMPOSTO |
Agricultura: |
|
por jugo de bois |
1 moio: 1 quarteiro de trigo |
|
1 quarteiro de centeio |
|
2 quarteiros de milho |
vinho |
1/10 |
linho |
1/10 |
|
|
Montaria: |
|
caça com “baraça” ou “madeiro” |
1 lombo a pagar por caçador que não dê jugada |
porco montês |
4 costas |
coelhos, a partir de 3 noites |
2 coelhos com suas peles |
Mel |
1 canada de mel ou 1 libra de cera |
|
|
Comércio: |
|
sal – carga de cavalo |
1 teiga |
carga de asno |
1 almude |
animais: cavalo |
1 “lenzo” (lenço = 2 bragais) |
égua |
1 bragal |
asno |
½ bragal |
boi |
½ bragal |
vaca |
2 côvados |
trouxeleiros |
1/10 da mercadoria vendida |
carniceiros: |
|
de porco |
2 lombos |
de vaca |
1 “pedra zebral” |
|
|
Mesteres: |
|
oleiro |
olas (número não especificado) |
ferreiro |
preparar malhos, correntes, ferraduras e cravos |
Outros: |
|
resgate de mouro |
3 morabitinos |
azarias |
1/5 (das receitas) |
mouro ou cavalo (apreendidos em terra inimiga) |
⅓ |
2. Miranda [do Corvo], 1136. Arouce e Pedrógão Grande.
Do mesmo ano do foral de Seia é o de Miranda do Corvo, embora este fosse outorgado em circunstâncias diferentes. Com efeito, enquanto Seia era habitada por uma população diversificada e laboriosa, de longas tradições, reforçadas desde o tempo da reconquista por Fernando Magno, Miranda é um município incipiente, que se deseja incrementar, à volta do castelo. Embora considere, em projecto, uma futura comunidade, o foral tem como destinatário imediato um indivíduo, de nome Uzberto, talvez o alcaide local, e a sua esposa.
Essas circunstâncias explicam a não existência neste diploma de certas cláusulas presentes em documentos homólogos da mesma data, como, por exemplo, as que fariam menção das atribuições do concelho, porque este órgão ainda se não constituíra, ou as que resultariam da criação de um direito local, com o andar do tempo, seguindo um processo detectável em forais da época, como já observámos.
2.1. Organização local.
Se não se vislumbra uma explícita referência ao concelho, perspectiva-se a sua formação, a partir do grupo dos boni homini, a que de antemão se confia o encargo de proceder à “exquisitio”, isto é, de averiguar a verdade sobre os factos delituosos. De igual modo se alude ao juiz e ao saião, para infligir coimas a quem os agredir. A autoridade régia é representada pelo vicario ville, a quem devem ser apresentadas as queixas contra as injúrias alheias, e que tem o direito e a obrigação de fazer penhoras (de 1 soldo), e de as repetir com insistência, aos acusados que se recusem a comparecer para satisfazer as exigências do direito.
2.2. A sociedade.
Prevê-se a divisão da sociedade local em duas grandes categorias, os agricole (agricultores) e os miles (cavaleiros); mas, como é usual nesta área, não falta a referência aos clérigos, para equiparar o seu estatuto ao dos cavaleiros, assim como a imposição aos moradores de que paguem tributo ao bispo, “como sucedia em Arouce”. A única originalidade deste foral é a menção dos sagitários ou frecheiros, que se equiparam aos cavaleiros.
O carácter incipiente do município explica também a ausência dos mesteres e dos comerciantes.
2.3. A justiça.
As coimas fixam-se, porém, em moeda e não em géneros, o que corresponde a uma evolução no sentido da monetarização da economia, que já tínhamos observado em Seia:
DELITOS E COIMAS
COIMA |
DELITO |
60 soldos |
homicídio dentro do castelo |
20 “ |
homicídio fora do castelo |
20 “ |
rouso |
30 “ |
violação do domicílio com armas |
20 “ |
agressão ao juiz |
10 “ |
agressão ao saião |
10 “ |
luta com lança e escudo |
5 “ |
luta com porra |
1 “ |
cada penhora, quando o acusado se recusar a comparecer para cumprir o direito |
vergastadas |
ferimentos a outro homem |
Uma excepção, muito curiosa, era a penalidade infligida ao morador que ferisse outro, que consistia num determinado número de vergastadas (flagellis), a fixar pelo juiz, conforme a maior ou menor gravidade do delito. Admite-se a luta como meio de prova judicial, indicando-se o tributo a pagar pelo vencido.
2.4. Economia e fiscalidade.
Os impostos correspondem a uma economia que vive exclusivamente do sector primário, e são relativamente reduzidos, se os compararmos com os de Seia, o que denota a intenção de favorecer a fixação de colonos. Assim a jugada é apenas de um quarteiro por cada bovino e os agricultores não pagam o condado (imposto sobre a caça) a que estão obrigados os monteiros.
MAPA TRIBUTÁRIO DE MIRANDA DO CORVO
ARTIGOS OU ACTIVIDADES |
IMPOSTOS |
Agricultura: |
|
por cada boi |
1 quarteiro |
vinho |
1/9 |
linho |
1 manelo |
Caça: |
|
[caça grossa] com “peias” |
1 lombo com 4 costas |
coelho – por morada de 1 dia no monte |
1 coelho |
Mel e cera |
½ cubelo de mel ou 1 arrátel de cera |
Forais com texto idêntico ao de Miranda do Corvo foram outorgados a Arouce, em Abril de 1151, e a Pedrógão Grande, em Fevereiro de 1206.
3. Penela, 1137
Diferente do de Miranda do Corvo era o caso de Penela, cujo foral foi outorgado no ano seguinte, e que nessa altura não só possuía um castelo como também era habitada por uma comunidade humana.
Penela, depois de Miranda do Corvo, corresponde, naquela data, à mais avançada linha da reconquista, e a reorganização local assinala os propósitos de D. Afonso Henriques não só de consolidar a defesa da região de Coimbra, mas de estabelecer focos de penetração no território sarraceno. Para incrementar o povoamento e obter a colaboração dos habitantes nesta empresa, D. Afonso Henriques cria um novo município, faz-lhe a doação do castro ou castelo e do território circundante e dota-o de “optimis foris”.
Circunstâncias específicas terão contribuído para que este foral não sofresse alterações, pelo menos facilmente identificáveis, de modo que talvez se possa apresentar como o mais vizinho do paradigma original do conjunto de foros outorgados na região pelos anos de 1136-1137.
3.1. Organização local.
Na ordenação da vida local de Penela, e na administração da justiça, é primordial a actuação do concelho. A propósito dos delitos não previstos no foral, este diz que “faciant iudicium inter se et conveniant se bene”. O acatamento das decisões do concelho é obrigatório, e quem as não aceitar deve vender os bens e abandonar a comunidade: “si aliquis homo non voluerit intrare in iudicium vicinorum suorum vendat illud quod habuerit totum ibi et exeat de nostro castelo”. Ao contrário de Seia, os julgamentos efectuam-se dentro do castelo.
Em dada altura, o diploma refere-se, na mesma cláusula, ao alcaide e ao juiz, sem que se torne claro tratar-se de duas autoridades ou de dois nomes da mesma autoridade: “Homo qui fuerit ad domum vicinorum suorum sine alcaide vel sine iudice (...)”. O artigo onde se estipula que o alcaide tenha a compensação adequada às suas funções – “ad illum alcaide suas quintas et suas alcaidarias et suos foros habeat” – assim como a não existência de equivalentes disposições em relação ao juiz, quando neste contexto seriam de esperar, se se tratasse de um cargo diferente, e o paralelismo que neste aspecto podemos estabelecer com o foral de Seia, aconselham-nos a pensar que se trata do mesmo cargo, referido sob dois nomes diferentes, em alternativa.
Actuam dentro do concelho um saião e um mordomo, este proibido de entrar nos lagares.
3.2. A justiça.
A tabela das coimas, além da já conhecida inclusão da multa a pagar pelo contendor que caísse (ceciderit) na luta travada com fins judiciais, tem a peculiaridade de aplicar uma penalidade fixa ao autor de furto (para além da conveniente restituição, subentende-se), composta por uma multa pecuniária e um castigo corporal: “percuciant illum ante et retro”.
DELITOS E COIMAS
COIMA |
DELITO |
600 soldos |
violação do couto |
65 “ (e perde a arma) |
violação do domicílio, com arma |
60 “ |
violação do domicílio |
30 “ |
homicídio, dentro |
30 “ |
rouso, dentro |
15 “ |
homicídio, fora |
15 “ |
rouso, fora |
10 “ |
agressão ao juiz |
5 “ |
agressão ao saião |
5 “ (e castigos corporais) |
furto |
2 “ |
luta com escudo e lança |
1 “ |
luta com porra |
3.3. A sociedade.
A sociedade local é integrada fundamentalmente por miles (cavaleiros) e jugários. Os privilégios dos cavaleiros não diferem praticamente dos que tinham nos municípios acima estudados; deles exclusivamente dependem os homens que viverem e trabalharem dentro das suas herdades.
Alguns forais prevêem que o peão que comprar cavalo adquira assim o estatuto de cavaleiro. Ora o foral de Penela, mais do que isso, estabelece não só a possibilidade de comprar cavalo, mas a obrigatoriedade de o fazer, que impende sobre o agricultor que possuir mais de dois jugos de bois, dez ovelhas, duas vacas e ... um leito com seus panos!
Uma cláusula semelhante passará a fazer parte do foral de Évora, e dos seus derivados, como a seu tempo veremos.
Os clérigos fruiriam das isenções e imunidades habituais, mas não o explicita o foral, que, por outro lado, estabelece que os clérigos da igreja de Penela dêem ao bispo uma pele de gineta e um alqueire de mel.
3.4. Economia e fiscalidade.
A economia local baseava-se na exploração da terra e na montaria. Há também, no foral, uma vaga referência à circulação de mercadorias, em ligação com o exterior do município, quando genericamente se isentam os vizinhos do pagamento de portagens. Sob o aspecto fiscal, os “optimis foris” de Penela correspondiam a este mapa:
MAPA TRIBUTÁRIO
ARTIGO OU ACTIVIDADE |
IMPOSTO |
||
Agricultura: |
|
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jugada (independente do número de bois) |
2 quarteiros: 1 de trigo e 1 de cevada |
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vinho (desde que colha 5 ou mais quinales) |
2 puçais |
||
Caça: |
|
||
permanência no monte superior a 8 dias |
1 alqueire de mel ou 1 arrátel de cera |
||
cervo |
1 lombo |
||
porco (javali) |
2 costas |
||
coelhos (caçador) |
1 coelho com sua pele |
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3. Avelal e Almofala.
O foral outorgado, oitenta e mais anos mais tarde, aos moradores de Avelal e Almofala, no actual concelho de Ansião, manda que, em relação a “rellego, alcaidaria e cooimhas”, os moradores sigam o foro de Penela.
3.1. Organização local.
O documento menciona a actuação colegial dos homens-bons, que até estão presentes na outorga, a existência do juiz e do mordomo. Em todos os aspectos é uma boa amostra das influências que viriam a ter no futuro os paradigmas elaborados na região de Coimbra, comprovando, aqui através da expressa citação do modelo adoptado, o que se dirá no capítulo XV.
3.2. Economia e fiscalidade
A única especificidade da carta de foro de Almofala é a fixação do tributo de base, não segundo o critério da jugada, mas, como dirão outros documentos, da ração ou percentagem sobre os géneros colhidos: um oitavo do pão, do vinho, do linho e até dos legumes, salvo das favas e ervilhas. A esse tributo acrescentam-se dois alqueires de trigo, por fogaça, e um capão, por altura das colheitas.