Burgos

      Uma das direcções tomadas pela política de organização do território, seguida pelo conde D. Henrique e continuada pelos seus sucessores, esteve na atracção de emigrantes estrangeiros para os instalar nos principais eixos viários, promovendo a revitalização económica, mediante a criação de uma nova classe, a dos burgueses – comerciantes, artesãos, albergueiros – até então inexistente. Não é, em certo sentido, uma inovação: foi uma orientação semelhante que proporcionou a criação ou o ressurgimento de uma série de povoações, na sua grande maioria situadas ao longo dessa via que liga as terras de além Pirenéus e o leste ibérico ao ocidente peninsular e é conhecida pelo significativo nome de caminho de Santiago.

O fenómeno enquadra-se de algum modo no processo de renovação da vida urbana que então anima a Europa.

O avanço da reconquista cristã em direcção ao sul cria na Península Ibérica as condições necessárias para o avanço, no extremo oeste peninsular, da onda de renascimento económico que atravessa a Europa desde a segunda metade do século X.

Para esse renascimento económico contribui o aumento da produção agrícola e a consequente criação de excedentes, que permitem alimentar as gentes que não trabalham nos campos, e aos agricultores ajudam a ultrapassar as barreiras da economia fechada e do autoconsumo.

Grupos de mercadores atraídos pelas novas possibilidades de lucro desempenham função importante no ressurgir das actividades artesanais e mercantis, sendo de destacar, em primeiro lugar, a importância dos francos.

Tiveram um papel de relevo na própria reconquista e na renovação da vida económica, espiritual e social do território português durante os séculos XI e XII, desempenhado de múltiplas formas, quer através da presença e da acção dos militares, quer das ordens religiosas e dos bispos, quer dos grupos (franci) que encontramos instalados em algumas cidades, quer mesmo da colonização de mais ou menos extensas superfícies agrárias (franci, gallici).

Mas é nas áreas urbanas onde a sua presença é mais decisiva, de tal modo que se repercute não só no incremento das actividades mercantis, mas também na difusão do seu espírito empreendedor e no seu estilo de vida, traduzido nos próprios vocábulos que a eles se referem: burgos, burgueses, franquias...

A instalação destes grupos, dando origem a novos aglomerados, muitos deles designados com o expressivo nome de burgos, fez-se em lugares economicamente estratégicos, onde pudesse funcionar um mercado, quer de modo autónomo, quer aproveitando a vizinhança de alguma fortaleza, os arrabaldes de uma cidade episcopal, ou a proximidade de um grande mosteiro. Não é de esquecer o contributo dos monges, que fundaram ou reformaram alguns dos mais importantes conventos da Península, entre os quais vale a pena recordar o de Sahagún, por motivo das referências que lhe encontramos na história da fundação de alguns municípios do norte de Portugal.

*

O conde D. Henrique – também ele era francês –, entre as primeiras medidas adoptadas pelo seu governo, incluiu a consolidação ou a criação de dois “burgos” correspondentes a outras tantas áreas do condado portucalense: Guimarães e Constantim. Guimarães era a sede do condado, ou, pelo menos, a residência “oficial” de D. Henrique; Constantim situava-se na encruzilhada de importantes vias que ligavam o litoral e o interior, o norte e o sul, eixo viário paralelo ao da costa, mas talvez o mais percorrido durante os séculos X e XI, por causa da maior exposição do litoral às acções de pirataria dos normandos e sarracenos. A estes dois pólos, de criação e funções meramente civis, correspondiam em cada uma destas áreas dois outros pólos urbanos que eram centros religiosos, dependentes da jurisdição eclesiástica: Braga e Porto.

Curiosamente são estes os mais antigos forais da região de Entre Douro e Minho. O mesmo formulário serviria, mais tarde, para o foral de Mesão Frio, de 1152, sob cuja influência foi certamente redigido o de Caldas de Aregos, de 1183.

Dois outros forais posteriores, embora originados por via diferente, se colocam também, plenamente, dentro desta categoria: o do Porto (1123) e o de Melgaço (1185).

O do Porto, outorgado pelo bispo, D. Hugo, seguiu como modelo o que foi concedido aos "burgueses" instalados nos arredores do mosteiro de Sahagún, e, com poucas alterações, foi dali a mais de um século concedido aos habitantes de dois aglomerados urbanos situados então nas vizinhanças da cidade portucalense: Cedofeita (1237) e Vila Nova de Gaia (1255), de outorga abacial e régia, respectivamente.

A primeira carta de foro de Melgaço, a pedido dos seus moradores, tomou por modelo a do vizinho burgo galego de Ribadávia, também ela derivada do foral de Sahagún.

Na mesma área geográfica, outros forais participam, ainda que em menor escala, das mesmas características fundamentais. Situando-se na região de Entre Douro e Minho, onde o território se encontrava já repartido entre vários senhorios laicos e eclesiásticos, as povoações que correspondem a tais cartas de foro têm a sua principal expressão nos, embora pequenos, aglomerados urbanos, a que se procura dar incremento mediante a protecção dispensada às feiras e a outras actividades económicas. Estão nesta categoria as povoações de Ponte de Lima, Barcelos e Vila Nova de Famalicão, a que ajuntaremos Banho, já na área de Viseu, e, com alguma hesitação, Castro Laboreiro.

 

1. Guimarães, Constantim [1096] e Mesão Frio, 1152

 

O mais antigo foral da região de Entre Douro e Minho, e do Condado Portucalense, é o de Guimarães. Não chegou aos nossos dias o documento original, nem o da sua confirmação por D. Afonso Henriques, a 27 de Abril de 1128, existindo apenas, como sucede com a maioria dos forais anteriores, a lição incluída na confirmação de D. Afonso II, curiosamente a única não datada, embora registada entre duas outras datadas de Outubro de 1217.

Alexandre Herculano, baseando-se numa cláusula do foral de Constantim, cuja data é de 1096, considera mais antigo o de Guimarães. Mas, já observou Alfredo Pimenta, essa passagem ("Et concilii de Constantim semper teneant hanc cartam de Gimaranes") não se encontra no texto do primitivo foral, mas está colocada a seguir à confirmação feita por D. Afonso Henriques, o que lhe retira o valor que poderia ter para o estabelecimento da cronologia da carta inicial.

No entanto, o foral de Guimarães é anterior ao de Constantim, não só porque carecem de consistência os argumentos utilizados para defender a prioridade cronológica e genealógica do foral de Constantim, mas sobretudo porque certas passagens existentes no foral de Constantim deveriam ter sido incluídas no foral de Guimarães, se este lhe fosse posterior e o utilizasse como modelo.

Em primeiro lugar, advirta-se que a cláusula relativa ao apelido, que limita a sua obrigatoriedade à possibilidade de voltar a casa no mesmo dia, o que levou alguns estudiosos a atribuir a prioridade cronológica ao foral de Constantim - por ser localidade mais vizinha de terra de mouros - é um argumento demasiado fácil e irrealista, pois de qualquer modo os guerreiros de Constantim, para virem dormir a casa, não poderiam chegar muito longe. Meio século depois, as mesmas palavras aparecem sem qualquer alteração no foral de Mesão Frio, de 1152, em circunstâncias históricas muito diversas, pois os mouros estão bem mais distantes. A determinação nela contida, e que se repete em documentos de outras terras, deve entender-se no sentido de que os moradores apenas seriam obrigados a responder ao apelido quando a sua própria segurança começava a estar ameaçada.

 Comparando o texto dos dois forais, deduz-se que houve a preocupação de dotar algumas cláusulas de maior precisão ou clareza no foral de Constantim:

uma das disposições constantes deste documento (relativa ao "rouso") só em 1128 entrará na confirmação do de Guimarães, que, a ter copiado o de Constantim, já a devia ter incluídor no núcleo inicial;

uma outra cláusula, contendo matéria de tão grande importância que, se existisse, não poderia deixar de ser reproduzida, é a que exige a existência de queixoso ou «rancuroso» para obrigar um cidadão a responder perante o juiz, e a comprovação dos factos que são objecto da queixa («cherimonia»), com o testemunho dos homens-bons. É, porém, de observar que estas disposições apenas se difundem a partir de 1135, como sabemos, e, por conseguinte, no foral de Constantim haverá uma interpolação posterior a essa data;

outro pormenor, em que o foral de Constantim não tem correspondência no foral de Guimarães, acha-se na cláusula relativa à morte do saião, ocorrida por causa da sua entrada em casa de um burguês: depois de estabelecer, como o de Guimarães, «si occisus fuerit per occasionem CCC.os solidos dabitur pro eo», o de Constantim acrescenta: «Et si alius homo ibi occisus fuerit tali pacto componatur et nichil aliud»;

enquanto o foral de Guimarães se satisfaz com a imprecação genérica, a preceder a subscrição final, o de Constantim ajunta-lhe uma cláusula a cominar uma pena de quinhentos soldos, além da restituição a dobrar, a quem tomasse os haveres dos burgueses;  

não se esqueça, finalmente, a disposição relativa ao padroado da igreja, que encontrará paralelo noutros forais posteriores da área de Trás-os-Montes.

 

Precedendo o de Constantim, que é de 1096, o foral de Guimarães, não pode, no entanto, ser anterior a esse ano, porque só então o conde D. Henrique tomou a seu cargo os destinos do condado portucalense, e é compreensível que, atendendo à grande importância de Guimarães, que se tornou de algum modo a cidade condal, onde terá estabelecido a morada da jovem esposa, e portanto, em certa medida, a sua residência oficial, e ainda pela expressão já alcançada no plano religioso, militar e económico, o seu foral fosse outorgado antes do de Constantim, localidade onde, naturalmente, haveria maior retardo no fervilhar das actividades burguesas.

*

O foral de Guimarães teve como objectivo incrementar o desenvolvimento de um "burgo", que já então se haveria instalado, nesta localidade. Logo no protocolo se mencionam como destinatários os povoadores locais: "ad vobis homines qui venistis populare in Vimaranes et ad illos qui ibi habitare voluerint usque in finem", e que, repetidas vezes, no texto do documento são designados como burgueses: “nullum sagionem non sit ausus intrare in casa de burges”, “ille burges qui fecerit calumpniam (...) judex judicet rectum judicium inter illo sagione et illo burges”, “si illo sagione intraverit in casa de illo burges”. Para conseguir tal objectivo, o foral estabelece um conjunto de medidas que contemplam vários aspectos da vida e da actividade local.

1.1.  Organização administrativa.

Quanto à organização do município, o foral de Guimarães fornece-nos algumas indicações relativas ao "concilio" (concelho), ao juiz e ao saião.

O concelho é o garante do direito e da consequente paz social (“qui vendiderit aut comparaverit nullo aver in Vimaranes ante illo concilio habeat illum liber et nemo sit ausus postea qui illum requirat per male”); a eleição de juiz é da competência deste concelho.

Ao juiz assim eleito – “judicem qui erectum fuerit de concilio” – compete julgar as “calumpnias”, coimas ou delitos cometidos pelos burgueses e denunciados pelo saião, aplicando-lhes as sanções correspondentes.

O saião aplica as multas e aceita fiadores pelas “calumpnias” ou infracções cometidas pelos burgueses, enquanto aguardam o julgamento, sendo-lhe, por regra, proibido fazer penhoras, a não ser aos fiadores, naturalmente quando estes não satisfizerem os compromissos assumidos. Protegem-se desse modo os moradores contra os abusos da autoridade policial, obrigando o saião a substituir as penhoras arbitrárias pela fiança e subsequente apresentação da causa ao juiz. Evitava-se, por esse modo, que os abusos da autoridade perturbassem o normal desenrolar da actividade económica, como sucederia com a realização indiferenciada de penhoras aos comerciantes ou até a sua mera expectativa.

1.2. A sociedade.

Assim, excluem-se os factores de diferenciação social, evitando os elementos que pudessem contribuir para alterar o equilíbrio interno da comunidade, designadamente precavendo a realização de actos de prepotência: por regra, é proibida a permanência, em Guimarães, de militares, beneficiários de estatuto privilegiado: “nullo cavallario non habeat pausada in Vimaranes nisi tantum per amorem domini sui”.

1.3. A justiça.

Na mesma linha se integra a fixação taxativa das multas a pagar pelas várias infracções. Não são referidas as penas aplicáveis às “coimas” ou crimes maiores – homicídio (a não ser o do saião), rouso, furto – às quais normalmente se aplicava a lei geral:

DELITOS E COIMAS

COIMAS

  DELITOS   

500  soldos   

 penhora abusiva (a coima é paga ao rei; paga mais, ao lesado, o dobro do valor)

300            

  homicídio do saião

60             

  brandir arma, por ira

7,5           

  agressão ao “vicario” (mordomo)

7,5           

  ferida com sangue ou que leve a cair

5             

  bofetada (“de manu extenta”)

12 dinheiros

  agressão a murro (“com punho fechado”)

 

1.4. Economia e fiscalidade.

Fixa-se um imposto anual único, de 12 dinheiros, por cada moradia.

Estabelece-se a liberdade de comércio, isto é, de compra e venda, acompanhando-a da tabela de impostos (sisas e/ou portagens) a cobrar na transação da principais mercadorias, isentando as de valor abaixo dos 12 dinheiros, que abrangeriam os habituais bens de consumo vendidos a retalho.

Os comerciantes que se dedicam à venda de carne estão sujeitos ao pagamento anual de 12 dinheiros, valor igual ao do imposto sobre a moradia.

PORTAGENS

TAXAS       

ARTIGOS  

12 dinheiros

cavalo/égua

12         

carga (trouxel) de cavalo

  6         

asno

  6         

carga de asno

  3         

carga de peão

  3         

pele de coelho

  2         

boi/vaca

  2         

capa

  2         

manto

  1         

saia

   1         

bragal

   1         

ovelha/cabra

   1         

couro de boi

   1         

porco

  isento     

mercadoria de valor inferior a 12 dinheiros

 

Outras medidas, como a limitação a bem pouco da obrigação de responder ao apelido e a isenção de montádigo, fora do termo, são de entender dentro do mesmo espírito: a primeira destinada a evitar as ausências, incompatíveis com o bom andamento dos negócios; a segunda, justificada pela necessidade de alimentar as bestas de carga, em viagem, ou num burgo, aglomerado habitacional praticamente desprovido de termo agrário, e, por conseguinte, também de montados.

 

*

A confirmação deste foral, outorgada por D. Afonso Henriques, em 1128, com o fim de agradecer aos burgueses vimaranenses o apoio que lhe dispensaram, introduz algumas inovações, de molde a incrementar a afluência de novos moradores, tornando mais atraente a fixação em Guimarães: isenção de portagem em todo o reino, a qual interessava em primeiro lugar aos burgueses, e proibição de retenção dos seus haveres por quem quer que seja; isenção de fossadeira, concedida aos cavaleiros, vassalos de infanções e homens “ingénuos” que vierem a fixar-se em Guimarães, e que beneficiava igualmente os burgueses; concessão de “liberdade” ou alforria aos “juniores” que vierem a habitar em Guimarães, o que os transformava também em “ingénuos” ou cidadãos livres.

Esta confirmação, se, por um lado, favorecia a instalação de grandes mercadores, que em condições vantajosas (isenção de portagens) no burgo podiam estabelecer o seu ponto de apoio para uma actuação em todo o país, por outro lado abolia o monolitismo social, subjacente ao foral anteriormente concedido pelo conde D. Henrique, admitindo dentro do burgo cidadãos com estatutos sociais diversificados.

 

2. Porto, 1123

 

Afim deste foral de Guimarães é também o foral que, em 1123, o bispo D. Hugo concedeu ao burgo do Porto, reproduzido, no essencial, pelo de Cedofeita e pelo de Gaia, ambos do século seguinte, de autoria abacial, o primeiro, e régia, o segundo.

D. Hugo era de origem francesa, mas deve ter vindo ainda muito jovem para a península ibérica. Foi discípulo e íntimo colaborador do arcebispo D. Diogo Gelmires, que o nomeou cónego e arcediago em Santiago de Compostela e o continuou a ter como colaborador, mesmo após a sua nomeação para bispo do Porto. A intervenção de Gelmires seria também decisiva para que, em 1120, D. Teresa doasse o couto e o burgo do Porto, ao seu prelado e sucessores, concedendo-lhe assim legitimidade para outorgar, três anos depois, a carta de foro.

O paradigma, de que D. Hugo se serviu, foi o foral do burgo formado nos arredores do mosteiro de San Facundo e San Primitivo (de San Facundo ou San Hagun vem o nome actual da povoação correspondente, Sahagún), redigido certamente pelos monges, embora outorgado por Afonso VI, em 1084. D. Hugo devia conhecer muito bem o mosteiro de Sahagún, se é que não se contou entre os seus monges – pode muito bem ser o “Hugo scriba” que assina o referido foral de 1084. D. Hugo participou no concílio de Burgos de 1117, onde tomou parte no tratamento dos assuntos relacionados com Sahagún.

Serviu o foral de Sahagún de modelo a vários outros, nas Astúrias e na Galiza (Oviedo, Avilés, Allariz, Ribadavia, Santander, Santillana...). No do Porto, D. Hugo diz expressamente: "dono et concedo (...) tales et tam bonos foros quales habent in Sancto Facundo". Mas o foral do Porto é mais breve e simples, tendo sido expurgado de algumas cláusulas demasiado rígidas ou vexatórias, algumas vezes responsáveis, em Sahagún, pela quebra da paz entre os burgueses e o mosteiro.

2.1. Organização administrativa.

À frente do governo civil do burgo está o senhor, que neste caso é o bispo, com o qual colabora o concelho – “consilio proborum virorum”.

Na administração ordinária do município, o meirinho substitui o bispo, cabendo-lhe as atribuições que noutros lugares são características do mordomo e do saião, isto é, o desempenho das funções económicas e policiais. Compete-lhe conceder terras para a plantação de vinhas, e, do mesmo modo, autorizar a construção de uma nova casa àquele que, vindo de fora, quiser instalar-se no burgo, e cobrar-lhe o respectivo soldo, correspondente aos direitos dominiais, assim como a venda da mesma por parte de um morador que pretenda migrar para outra localidade, podendo exercer o direito de opção, como representante do bispo. Sob pena de ser destituído do seu cargo, terá de salvaguardar as devidas restrições na execução de alguns actos: quando tiver de fazer uma penhora, não poderá entrar na casa dos burgueses, quando no exterior existirem bens para ser penhorados, mas, se os não encontrar, terá de fazer-se acompanhar de dois ou três homens-bons da mesma vila.

Não há qualquer referência ao juiz, porque esta função era reservada ao bispo, ou a um clérigo por ele nomeado, naturalmente com poderes quer no foro civil, quer no foro religioso.

2.2. Direito de propriedade.

Restringe-se, como também acontecia em Sahagún, o direito de dispor, por venda ou doação, da sua casa, pois é obrigatório pedir a autorização do bispo, ou do seu meirinho, e o prelado, em caso de venda, terá sempre direito do opção. Trata-se no fundo não só de uma fórmula tendente a relembrar o poder senhorial do antístite, mas também de um mecanismo apto a evitar a intromissão, no seio da comunidade, de elementos perturbadores da paz social, e nesse aspecto corresponde a certas cláusulas que encontramos noutros forais.

2.3. Economia e fiscalidade.

Quanto aos impostos, vem em primeiro lugar o pagamento de um soldo (o equivalente aos doze dinheiros de Guimarães), pela casa.

Contrastando com o que se passava em Sahagún, há uma grande liberdade de comércio, com aplicação de sisas ou portagens idênticas às de Guimarães, relativamente às espécies mencionadas em ambas as cartas de foro.

PORTAGENS

TAXAS

ARTIGOS

1  soldo 

cavalo * 

1      

trouxel ou carga [de panos] * 

6  dinheiros  

égua

4      

asno

2      

carga de ibição (jumento)

2      

boi / vaca *  

2      

capa *

2      

manto *  

2      

corda de pano 

2      

cabo de fustão

2      

couro vermelho ou branco

2      

dúzia de raposas

1      

carga de peão 

1      

uma raposa

1      

couro *  

1      

porco *  

1      

saia *

1  mealha

ovelha / carneiro  

lombos

vaca ou porco que um forasteiro matar

isento

dois bragais vendidos para comer

       

pão 


* Assinalam-se com asterisco os artigos mencionados com taxa idêntica à de Guimarães. Apenas à égua, ao asno e à ovelha e a uma carga de peão se aplicam taxas diferentes.

 

     Não obstante a sua índole de burgo, e porque à volta se estendiam as terras do couto, prevê-se a extensão agrícola da povoação, a incrementar em dois sentidos:

– arroteamento de novas terras, que se tornarão propriedade do seu desbravador, ficando este sujeito ao pagamento de uma renda anual correspondente a um quarto do rendimento;

– plantação de vinhas em locais cedidos, com essa finalidade, pelo meirinho, das quais se pagaria igualmente a quarta parte do vinho produzido.

     2.4. Justiça

     No capítulo penal, a carta de foro do Porto é muito breve. Depois de estabelecer a uniformidade das medidas a usar na compra e na venda, designadamente do pão, do vinho e do sal, atribui aos transgressores uma pena bastante pesada (cinco soldos), e considera grave delito a sonegação das portagens, que é penalizada com o pagamento a dobrar o seu valor e a “inimizade” do bispo.

     Quanto ao mais, é excepcionalmente lacónica: “decima pars reddatur nisi fuerit rausum et homicidium et maiorinum”. Esta disposição dever-se-á entender do modo seguinte: pelos crimes de rouso e homicídio (inclusive, do meirinho), a penalidade é igual à que estava em uso no território; quanto aos restantes delitos, a coima é reduzida para a décima parte.

*  *  *

     Como acima ficou registado, os forais de Cedofeita e Vila Nova Gaia são emanações do foral do Porto. Se o foral de Cedofeita, 124 anos posterior, praticamente não introduz inovações, já o foral de Vila Nova de Gaia, em 1255, apresenta algumas novidades, algumas das quais estão relacionadas com a política seguida pelo outorgante, como a isenção de portagens concedida aos moradores, e outras, como o aumento do número de artigos taxados, têm a ver com a expansão económica da época. 3. Caldas de Aregos, 1183

      Em 1183, D. Afonso Henriques outorgou, a favor de Caldas de Aregos, uma carta de foro, que reúne todas as condições para que se classifique na categoria dos burgos a povoação a que foi concedida.

     3.1. Organização administrativa.

     A instituição mais importante na área do burgo é o concelho: às suas atribuições, como garante da ordem pública e da aplicação da justiça, corresponde o direito a receber metade da receita proveniente das coimas. O concelho tem a sua palavra a dizer sobre a escolha do mordomo, que é nomeado pelo senhor: “et mitat maiordomo et tollat per vestro grado”.

     3.2. Fiscalidade.

     Fixa-se o imposto anual de um soldo, a pagar por cada fogo, de que o respectivo morador pode dispor livremente, desde que nele habite há mais de um ano.

     Não se mencionam quaisquer impostos sobre rendimentos agrícolas.

     Estabelece-se uma tabela de portagens, a pagar pelos mercadores de fora do município que realizem as suas transacções comerciais dentro da vila de Aregos ou seu termo. De um modo geral, os valores correspondem aos que se praticavam nos outros burgos. A receita das portagens – de cujo pagamento os moradores estão isentos dentro do termo do município – divide-se também em três partes iguais: duas para o rei e uma para o hospedeiro do comerciante.

MAPA TRIBUTÁRIO

ARTIGOS

      TAXA

carga de besta cavalar (panos?)

1 soldo 

vaca

1  

besta cavalar ou muar

1  

carga de asno (panos?)

6 dinheiros 

asno

6  

manto, pele ...

2  

saia, bragal ...

1  

reixelo

1  

porco

1  

pão e vinho

isentos

 

     A obrigação de participar no apelido restringe-se às campanhas para que sejam expressamente convocados pelo rei.

     3.3. Fiscalidade.

     Todas as coimas são convertidas em dinheiro, segundo a equivalência: 1 moio / 1 soldo. Esta conversão corresponde a uma economia de acentuada monetarização, como é natural num burgo da segunda metade do século XII. Aliás, como no burgo do Porto, mas aqui sem exceptuar o homicídio e o rouso, o quantitativo das coimas, de um modo muito claro, é reduzido para a décima parte. O produto das coimas é partido a meio, entre o rei e o concelho. Num aspecto, porém, ainda no âmbito do direito penal, o foral de Aregos ressente-se mais das influências do interior, sobretudo do nordeste do distrito de Viseu, ao admitir o recurso ao castigo físico em relação a alguns delitos: os ferimentos causados a um vizinho e a violação do domicílio são punidos com vinte vergastadas, aplicadas pelo lesado!

     Previnem-se os estranhos contra a realização de actos de prepotência, sem excluir o mordomo da terra, de tal modo que, se este, em tais circunstâncias, for vítima de homicídio, a sua qualidade de mordomo não constitui agravante. Ao próprio senhor da terra é vedado tomar as bestas de carga aos moradores, sem o seu prévio assentimento. À violação do foro, operada por estranhos, peões ou cavaleiros, aplica-se a multa de quinhentos soldos.