Alguns anos antes da outorga de qualquer novo foral por parte de D. Afonso Henriques – para além das confirmações dos forais de Guimarães e de Constantim – dava-se um facto que iria ter grandes repercussões na evolução do municipalismo português: a outorga do foral de Numão, ocorrida a 7 de Julho de 1130. A sua influência iria estender-se praticamente a todo o distrito da Guarda, excluindo Seia, talvez mesmo sem exceptuar a região entre o Coa e o Águeda, ao sul do distrito de Bragança, e alargar-se-ia ao Minho e a Aguiar de Pena.
Não se conhece nenhum foral breve de Salamanca, embora haja referências documentais que atribuem ao conde D. Raimundo a sua outorga, que se terá verificado entre 1102 e 1106. Perdendo a actualidade após a posterior elaboração do chamado foro extenso de Salamanca, é um dos muitos textos irremediavelmente perdidos, embora seja possível uma reconstituição aproximativa, graças sobretudo aos documentos em que uma versão dele derivada foi outorgada como carta de foro a diversas localidades portuguesas.
1. Numão, 1130
O foral de Numão tem sido classificado, por vezes, como um diploma particular, mas de facto integra-se na política geral do estado, tendo sido outorgado por Fernão Mendes, genro de D. Teresa, potestas ou “tenens” na área de Bragança e Lampaças. Não é uma criação original do prócere, nem dos moradores de Numão, mas resulta da influência que teve na região outro foral mais antigo, outorgado inicialmente a Salamanca, sob cuja órbita Numão gravitava em tempos anteriores.
Numão tinha uma implantação de grande valor estratégico para o domínio das margens do Douro, e era por isso, desde longínquos tempos, uma localidade importante. A concessão do foral corresponde, por um lado, à existência de uma população com arreigados hábitos de autonomia, e, por outro lado, a um consciente programa de avanço e consolidação das linhas de fronteira, iniciada nos primeiros anos do governo de D. Afonso Henriques, como já se observou em relação à área de Viseu e à linha do Mondego.
Segundo a descrição do termo contida no foral, o território deste município englobava, nessa época, uma vasta área localizada na margem sul do Douro, que ia desde Celeirós até ao rio Águeda, isto é, que abrangia pelo menos a parte norte dos actuais concelhos de Vila Nova de Foz Coa e de Figueira de Castelo Rodrigo.
1.1. Organização local.
A base da organização municipal continua a ser o concelho, constituído pelos vizinhos. A expressão “homens-bons” não é utilizada no foral de Numão. É ao concelho que se vai pedir justiça, que não pode ser procurada directamente por outros meios; sem autorização do concelho não é lícito fazer penhoras (havia uma tendência muito grande para adoptar este meio de garantir os próprios direitos, como supõe tantos outros forais de vários tipos). Todo o concelho seria parte em processo contra aquele que resolvesse fazer justiça pelas próprias mãos, sem recorrer ao referido concelho, assassinando quem estivesse em situação de “inimizade” para consigo. A principal autoridade dentro do concelho é o juiz, que “entra” nas coimas e “pactos”, isto é, intervém para julgar os processos penais e contenciosos, e ainda é o único intermediário credenciado para requisitar “pousada” em casa de um peão, quando algum personagem a ela tiver direito, e para receber a “colecta” que os vizinhos pagam ao senhor. Cada um dos vizinhos paga-lhe anualmente a “soldada” de doze soldos. Com o decorrer dos tempos, as funções do juiz virão a ser partilhadas e mesmo absorvidas pelos alcaldes, a que já se refere este foral.
Ao tratar do foral de S. João da Pesqueira, observámos como nesta região, em tempos anteriores, o povoamento se traduzia nas existência de alguns focos habitacionais, a partir dos quais se organizavam e exploravam gradualmente as terras circunvizinhas, sem ter necessariamente um termo ou alfoz bem definido. Em dada altura, a pressão demográfica suscitava o aparecimento de novas aldeias ou vilas, que inicialmente se mantinham na órbita do primeiro centro populacional. A coesão entre essas unidades baseava-se numa concepção do mundo em que pesavam muito as ligações familiares, num sentido amplo, como atesta o uso, neste foral, do vocábulo gentes, aplicado em determinadas situações, enquanto noutras passagens, correspondentes a ocorrências de âmbito mais restrito, se fala unicamente de parentes, quer no sentido original em que se empregava o vocábulo na língua latina (pais), quer no sentido moderno. Tal coesão explica em certa medida que uma destas comunidades se não fragmente com rapidez, apesar da grande extensão do território que lhe corresponde, mesmo com o termo claramente definido (na prática é difícil ou mesmo até impossível averiguar até onde chegava o domínio efectivo desta comunidade sobre o seu território), ao contrário do que sucederia com S. João da Pesqueira, onde inicialmente o problema do termo se não poria e o domínio administrativo e útil da terra se diluía nos esbatidos contornos do horizonte.
A extensão do território vai, porém, exigir a multiplicação do número de magistrados a quem compete governar o município, dando origem ao corpo dos alcaldes, a exercer funções em concomitância com o juiz, ou mesmo em sua substituição, embora não se encontrem fórmulas tão claras como a do foral de Balbás, que, em 1135, estipulava “judices sint quatuor qui vulgo alcaldes vocantur”. Por outro lado nem em todos os forais deste conjunto se encontram referências aos alcaldes. Encontramo-las nos forais de Freixo e seus derivados (Mós, Urros, Junqueira da Vilariça), de Valhelhas, da Guarda e seus filiados. O foral de Aguiar de Pena, que cita como paradigma o de Salamanca, não refere os alcaldes, que também não aparecem no subgrupo de Linhares, Gouveia e Folgosinho, assim como no de Trancoso e noutros dele dependentes. No foral de Numão são mencionados apenas uma vez, e pode mesmo tratar-se de uma adição posterior à outorga inicial (não aparece na correspondente cláusula de outras cartas de foro, com excepção das de Mós e de Urros, e no primeiro porque se fala sempre e apenas de alcaldes onde os outros referem o juiz), o que aliás lhe não retira valor, antes reforça a intencionalidade e pode mesmo testemunhar a dinâmica desta comunidade.
A evolução que se reflecte nos diplomas não só corresponderá ao contacto com estruturas municipais de além-fronteira, testemunhada também nos posteriores forais extensos de espaços que virão a ser integrados no reino de Portugal (forais do grupo de Castelo Rodrigo), mas também, como nesses espaços, depende da correlação que se estabelece entre a amplitude do alfoz municipal e a expansão demográfica que dentro dele se verifica a partir de determinada altura.
O “senhor da cidade” – na data era o outorgante, o braganção Fernando Mendes – não intervém na condução da vida local nem na administração da justiça. O palácio, isto é, o senhor, limita-se a receber os impostos e a parte que lhe cabe das coimas arrecadadas pelo concelho (pelo juiz e alcaldes). Em questões de justiça, o senhor apenas é citado uma vez, e mesmo nesse lugar a citação tem um caracter simbólico: refere-se ao asilo concedido aos naturais de fora do município que se refugiam sob a protecção do senhor de Numão: “homines qui (...) tornaverint se ad seniorem de Nomam (...)”; ora para beneficiar deste asilo o recém-chegado apresentava-se não directamente ao senhor, mas aos órgãos de justiça local, para declarar a sua situação e manifestar o desejo de viver dentro do município. Para além disso, a actuação do senhor restringia-se à esfera militar (inclusivamente, fornece as armas aos vizinhos). O foral exclui também a intervenção de qualquer meirinho nomeado pelo senhor.
1.2. A sociedade.
A sociedade de Numão não é, porém, igualitária, pois, não obstante a disposição de que, exceptuado o senhor, “tota alia civitas unum forum habeat”, o foral admite dentro do município várias qualidades de pessoas. Nem sequer se manterá a total exclusividade do foro judicial próprio, que, na mesma cláusula, se aceita como privativo do palácio senhorial (“illud palazium de Fernando Menendiz habeat calumpniam, (...) aliud palacium non habeat calumpniam”).
Em Numão há cavaleiros e peões, clérigos, a que eventualmente (de passagem) se acrescentam os mercadores, e, numa fase posterior, vigora um estatuto especial para os “senhores” de “solar” e os seus dependentes, os “solarengos”. Mesmo que a cláusula possa ser de introdução mais tardia – pois o foral de Freixo ainda a não integra – isso significa que os proprietários de Numão com trabalhadores dependentes nas suas casa ou herdades têm, pelo menos a partir de determinada altura, o direito de lhes aplicar a justiça, cabendo ao concelho apenas uma função supletiva, na ausência dos respectivos donos.
Os cavaleiros – do mesmo modo que as viúvas e os clérigos – estão isentos da obrigação de dar pousada, mas impende sobre eles a obrigação do fossado, em grupos que se revezam trienalmente: num ano vai-se ao fossado, no outro pagam-se dez soldos e o terceiro é de folga. Os cavaleiros que acompanharem o senhor na montaria beneficiarão de um terço das receitas do montádigo. Mas o privilégio principal de que usufruem os cavaleiros de Numão é o da equiparação do seu estatuto jurídico ao dos infanções, regalia que se irá repetir, dali a uma década e posteriormente, em muitos outros forais, mas em que este é, em território português, o pioneiro. Tal privilégio, que fora concedido anteriormente, muito para lá da fronteira, aos moradores de Sepúlveda e encontrou eco noutros forais da Extremadura castelhana, dava às suas declarações em tribunal um valor idêntico ao das proferidas pelos infanções, e até maior, se abonadas por mais (duas) testemunhas. Disposições deste género foram mais frequentes em diplomas outorgados a municípios localizados em áreas fronteiriças, aonde, mediante a concessão de regalias, se procuravam atrair povoadores.
A esta promoção dos cavaleiros corresponde uma prerrogativa semelhante concedida aos peões, que, para efeitos de justiça, passam a ser equiparados aos cavaleiros vilãos de outras terras.
Embora, em determinada altura, se diga que as propriedades – searas e vinhas – do senhor de Numão estão abrangidas por um estatuto (pactum) igual ao das dos outros moradores, se, como vimos, esse estatuto não se aplicava no foro judicial, é difícil compreender que significado poderia ter no aspecto fiscal, porque os impostos revertiam a favor do senhor.
Algumas determinações do foral dizem respeito expressamente à família. Penaliza-se o abandono do cônjuge e determina-se que, mesmo após a migração de um morador que vai “servir outro senhor”, a sua esposa e filhos sejam considerados vizinhos como os demais. Além de estarem isentas da obrigação de dar pousada em suas casas, as viúvas não respondiam, como os órfãos, pelas penhoras que oneravam o falecido. Não se cobrava o núncio (ou lutuosa, foro ou imposto que se pagava após a morte de alguém) nem a manaria (ou maninhádego, que consistia na entrega ao senhor de uma parte considerável ou mesmo de todos os bens do que morresse sem deixar filhos).
Aquele que, já depois de trabalhar durante pelo menos um ano as suas herdades – é o princípio da prescrição de ano e dia – ou de ter casa construída em Numão, se mudasse definitivamente para outra terra, podia continuar a usufruir dessas propriedades ou vendê-las.
1.3. Economia e fiscalidade.
Os encargos fiscais são relativamente poucos, e, por tal razão, o foral escassos elementos fornece sobre a economia local. Produzia-se a cevada e tratava-se da vinha, que constituiriam as duas culturas mais importantes, apascentava-se o gado, e admite-se ainda, em 1130, a hipótese de extrair lucros das razias feitas em áreas sob o domínio sarraceno – tais lucros são taxados com o pagamento de uma “quinta” parte. Para a colecta, a entregar ao senhor por intermédio do juiz, dá cada casa uma “oitava” (de moio) de cevada, dois pães e um dinheiro. Não têm expressão significativa os sectores secundário e terciário da economia local, pois, embora haja algum dinheiro (faz parte da colecta a pagar), a única referência clara à circulação de mercadorias é a da cláusula relativa às portagens, na qual se supõe que os mercadores, pelo menos de passagem, estacionam em Numão, pois se determina que uma parte da taxa reverta a favor do hospedeiro (era o modo de pagar ao dono da casa onde se instalavam e de lhe fornecer estímulo para colaborar na cobrança do imposto). A existência de um mercado local é atestada pelo foral de Numão, e pelos que derivam do mesmo paradigma, do mesmo modo que sucede com Évora e com os municípios a que o seu foral serviu de modelo.
1.4. A justiça.
Os forais deste conjunto e os de um outro, que tem com este certas afinidades (os de Évora e seus derivados) são os que maior tendência têm para desenvolverem um código de procedimentos adoptados localmente, dando origem, em diversos municípios, aos chamados forais extensos. Essa tendência aparece já anunciada nos próprios forais breves, que, tal como sucede com o de Numão, contêm, à partida, um razoável conjunto de normas de âmbito judicial. Em relação a este último, podemos estruturar essas normas do modo seguinte:
– Está reservada ao concelho a administração da justiça; ninguém por sua iniciativa pode realizar acções que colidam com esse princípio, designadamente efectuar penhoras, ou exercer revindicta contra os inimigos (a inimizade era o estado em que se caía pelo cometimento de algum delito grave contra a pessoa de alguém ou dos seus familiares, designadamente o homicídio ou o rouso).
– Nenhuma autoridade estranha, além do juiz, intervém (intrat) em “nullum pactum nec aliquam calumpniam”, isto é, compete ao juiz julgar os processos contenciosos (pactum) ou de crime (calumpnia).
– Ninguém pode ser chamado a responder “sem rancuroso” (queixoso), isto é, sem a existência de uma queixa devidamente formulada. Num caso especial, descreve-se o procedimento a adoptar pela ofendida: a vítima de rouso (violação) deve vir a clamar em voz alta contra o agressor (outros forais descreverão este procedimento com mais realismo).
– Para os julgamentos ou reuniões (iudicium vel iuncta) em que uma das partes não for do município fixa-se o local do medianido, onde tais actos se realizarão, no extremo do concelho.
– Através do juramento, acompanhado da apresentação de um certo número de testemunhas abonatórias, pode defender o seu bom nome e a sua inocência, aquele que for alvo de suspeita, exigindo-se, em caso de rouso ou quando estiverem envolvidos valores acima de dez soldos, que as doze testemunhas sejam das casas mais próximas, servindo nos outros casos qualquer vizinho.
– O município de Numão concede asilo a todos os que nele entrarem depois de noutra localidade terem cometido qualquer delito, mesmo dos mais graves, incluindo o rouso e o homicídio, desde que não levem consigo mulher alheia; nenhum estranho, ainda que inimigo, isto é que, na sua pessoa ou de algum seu próximo parente, se sinta lesado pelo delito cometido, pode vir no encalço do refugiado, para lhe fazer penhoras ou infligir alguma espécie de castigo. Mesmo que um vizinho cometesse um homicídio, de que fosse vítima um homem de fora do município que tivesse parentes (“gentes”) a residir em Numão, era vedado a estes perseguir o homicida como “inimigo”, sob pena de incorrerem na pena de expulsão da cidade, assim como dar guarida a outras “gentes” que viessem de fora, para matar ou exercer outra forma de vingança sobre o homicida.
– Um capítulo sempre difícil de esclarecer tem sido o das penhoras e das “fiadorias”, tão frequentes nos hábitos medievais. Embora o tema possa e deva ser objecto de ulterior estudo, dar fiadoria ou fiança consistia em apresentar uma pessoa, o fiador ou “fiel”, que dava a garantia de que alguém cumpriria as obrigações a que, segundo o direito, estava sujeito. Depois de apresentar um fiador idóneo, o réu podia aguardar em paz o julgamento ou, noutras circunstâncias, o momento em que devia satisfazer os seus compromissos. Se aquele a quem foi exigida fiança, não cumprisse as suas obrigações, entrava em seu lugar o fiador, embora pudesse depois reclamar os seus direitos. Segundo o foral de Numão, as obrigações assumidas pelo fiador caducavam ao fim de meio ano, ou por morte, de tal modo que não obrigavam os filhos órfãos nem a viúva. O contendor era obrigado a aceitar a fiança. Se, naturalmente após a ocorrência de um delito grave, o contendor recusasse o fiador que lhe era apresentado com duas testemunhas e depois matasse o adversário, o concelho tornava-se parte na acção movida contra ele. Uma outra cláusula parece dizer que incorria em penalidade aquele que exigisse fiador e depois desistisse da demanda (“homo de Nomam qui fiador intraverit et contemtorem non habuerit pectet V solidos”), pois devia prosseguir nela: “demandet suam vocem et forum de Nomam”.
– Prática diferente da de exigir “fiadoria” era a de fazer penhoras. Fazer uma penhora consistia em reter os bens de alguém, apreendendo-os ou selando-os (colocando-lhes “pinhos”, isto é sinais de penhora), enquanto não reparasse os danos causados ou cumprisse os seus deveres de justiça. Outras vezes era o réu que, em vez de apresentar fiador, dava bens em penhora, isto é, diríamos hoje, apresentava uma caução, como garantia de que estava disposto a cumprir o que fosse determinado pelos órgãos da justiça. Encontram-se alusões, nos forais, a penhoras feitas a seguir à sentença do juiz: essas penhoras destinavam-se a garantir o cumprimento, num determinado prazo, da sentença ditada pelo tribunal. Da leitura dos forais, se conclui que havia uma tendência muito grande para fazer indiscriminadamente penhoras, logo que alguém se sentisse prejudicado. Em Numão era proibido fazer penhoras em vez de pedir justiça ao concelho. A penhora resultava de compromissos ou obrigações contraídos pessoalmente, e, em consequência, os habitantes de Numão não podiam ser penhorados em vez do senhor ou de meirinho estranho ao concelho. Em relação às penhoras trazidas de fora da terra, o foral determina que se paguem delas, sem ultrapassar o justo valor.
As mesmas preocupações que presidiram à fixação de várias normas de actuação, na área do município, manifestam-se também na tabela das coimas a aplicar aos vários crimes e delitos.
A penalidade infligida aos autores de homicídio simples não aparece no texto do foral, que apenas determina que um sétimo da coima aplicada (“VII.ª appreciadura”) reverta para os cofres do palácio. Em geral a coima aplicada ao homicídio acompanha a coima estabelecida para o rouso. O foral de Mós, no parágrafo correspondente, esclarecerá que de facto a coima de homicídio é de 300 soldos.
DELITOS
E COIMAS
COIMAS |
DELITOS |
DESTINATÁRIOS |
|
3000 soldos |
Homicídio na cidade ou arredores |
1/2 às suas gentes |
1/2 ao palácio |
3000 » |
Homicídio de vizinho, dentro do concelho, perpetrado por parentes de estranho ao concelho, por ele assassinado |
1/2 às suas gentes |
1/2 ao palácio |
500 » |
Homicídio de homicida, na casa deste |
1/2 às suas gentes |
1/2 ao palácio |
500 » |
Violação do direito de asilo, por estranhos ao concelho |
senhor de Numão |
ao lesado paga as feridas ou as penhoras, se as fez |
[300] » |
Homicídio |
[aos parentes] |
1/7 ao palácio |
300 » |
Homicídio praticado por “solarengo” |
ao senhor do solar |
1/7 ao palácio |
300 » |
Rouso |
1/2 ao palácio |
1/2 às suas gentes |
300 » |
Rapto |
1/2 ao palácio |
1/2 aos pais |
300 » |
Prender homem de Numão |
(senhor?) |
|
300 » |
Sequestro (por cada homem) |
1/2 ao palácio |
1/2 aos parentes |
300 » |
Ferir mulher alheia |
ao marido |
1/7 ao palácio |
300 » |
Violação do domicílio |
(?) |
|
300 » |
Tirar a esposa ao marido (cada noite) |
marido e |
palácio |
300 » |
Abandono do marido pela a mulher (é também deserdada) |
(?) |
|
60 » |
Penhora indevida |
senhor |
|
60 » |
Ferir em público (mercado, igreja, concelho) |
concelho |
1/7 ao palácio |
5 » |
Descavalgar cavaleiro de outra terra |
(senhor?) |
|
5 » |
Contendor que exige fiador indevidamente |
(?) |
|
1 coelho |
Abandono da esposa |
|
juiz |
8 vezes valor |
Furto |
o seu ao seu dono |
1/7 ao palácio [o resto ao conc.º] |
expulsão |
Perseguição feita por alguém de fora, a quem matou alguém da sua gente, |
1/2 às suas “gentes” |
|
Pode não ser correcto, a partir da tabela das coimas, e concretamente das penalidades aplicadas aos delitos de abandono do cônjuge, concluir pela diferença de tratamento em relação ao homem e à mulher, que efectivamente é apenas aparente. Com efeito, aplicam-se ao marido e à esposa duas coimas muito diferentes: ao marido que abandona a esposa parece aplicar-se uma pena meramente simbólica – 1 coelho – que seria até irrisória, pelo valor e pelo género em que é fixada; por outro lado a esposa paga 300 soldos e é deserdada. A explicação desta diferença estará no dote que o marido, na altura do casamento, dava à esposa, e que não recuperava, mesmo se ela o abandonasse. Assim, dando-se a separação, se a iniciativa dependesse do homem, este daria ao juiz uma espécie de pouco valor, equivalente ao que, na linguagem de hoje poderíamos chamar emolumentos, correspondentes ao averbamento do facto nos registos municipais; se a iniciativa dependesse da mulher, esta pagaria uma importância correspondente ao reembolso do dote que o marido lhe havia dado. Que, na realidade, esta disposição poucas vezes terá sido necessária, prova-o o facto de nunca ter havido necessidade de traduzir em valores monetários a taxa a pagar ao juiz, ao contrário do que sucedeu com as outras coimas fixadas no documento.
Do
conjunto, ressalta uma preocupação muito grande em evitar certos meios
selvagens de fazer justiça pelas próprias mãos, especialmente por meios
sangrentos. Essa necessidade faz-nos pensar na existência de franjas da população
ainda arreigadas a costumes rudes, enquanto noutros sectores os hábitos de
convivência e de organização produziam os melhores frutos do municipalismo.
2. A fortuna dos forais do grupo de Numão
2.1. Análise de uma proposta de classificação.
O meritório trabalho de Ana Maria Barrero, no sentido de estabelecer a linha genealógica dos forais que seguem o modelo de Salamanca, com o intuito de reconstituir o seu paradigma comum, necessita de algumas correcções e achegas, de entre as quais se me afiguram como mais importantes as seguintes:
– é inconsistente a problematização das datas de vários forais, resultante da utilização de catálogos episcopais com cronologias erradas;
– o quadro genealógico é demasiado complexo, em resultado da excessiva preocupação em explicar certas variantes comuns a alguns forais, as quais em alguns casos resultam simplesmente de uma contaminação, isto é, de interpolações ou adendas posteriores à outorga inicial, feitas com o propósito de incluir normas generalizadas no país ou na região ou devidas a modificações inevitáveis, provocadas pelo evoluir dos tempos, como sucede com os valores pecuniários estabelecidos para as diversas coimas.
Expurgado dessas imperfeições, e feita uma ou outra correcção, o mapa de A. M. Barrero pode dizer-se conseguido. Nenhum destes forais se conhece no diploma original, e é admissível que servisse de modelo a outro, antes de sofrer qualquer interpolação ou adenda, ou de ser expurgado de alguma cláusula, do mesmo modo que o novo foral pode sofrer alterações que, em algum pormenor, o distanciem do seu paradigma.
Entre as modificações a introduzir no referido mapa, conta-se a inclusão do foral de Junqueira da Vilariça e o desdobramento das povoações com o topónimo Aguiar, ambas, em tempos diferentes, com uma carta de foro desta família: Aguiar da Beira e Aguiar de Pena. Embora caia fora do estrito âmbito cronológico deste estudo, a genealogia dos forais alto-minhotos carece também de alguns ajustamentos. E para o quadro ser completo, deveríamos acrescentar uma alusão ao primeiro foral de Pinhel, que, especificamente, em matéria de justiça, e também genericamente, remete para o de Trancoso, e ao de Vila Boa do Mondego, que em matéria de coimas determina que sejam julgadas pelo foro de Celorico, e em diversas outras passagens dele se avizinha, assim como ao de Alvende, que várias vezes faz apelo ao da Guarda.
2.2. Classificação.
O estudo comparativo destes forais conduziu-nos às seguintes conclusões:
– Em 1130 foi outorgada a Numão a sua carta de foro, cujo teor conhecemos através da posterior confirmação de D. Afonso II. Na elaboração dessa carta, embora sem o referir, utilizou-se um paradigma já existente, que era uma versão mais ou menos próxima do texto que noutros diplomas é designado como o foral de Salamanca (versão A). É específica do foral de Numão a cláusula relativa ao montádigo, assim como é própria a redacção das disposições tributárias.
– A mesma versão (A) serviu de paradigma na redacção do foral de Freixo, em 1152. Na redacção que chegou até nós, a carta de foro de Freixo apresenta muitas diferenças em relação à maioria dos outros forais deste grupo. Tais diferenças devem-se, na sua maior parte, a acréscimos posteriores. A sua mais antiga versão foi registada nas Inquirições de D. Afonso III, nas quais se anotou que “ista carta non tenebat sigillum de aliquo rege et erat littera facta sicut est ista de tribus manibus et scriberunt istud modo, quod est scriptum sub forma de ista manu” (“esta carta não tinha selo de nenhum rei e a letra era feita como esta, de três mãos diferentes, deste modo como se reproduz aqui...”), e o procedimento que o escriba adoptou ainda hoje permite que se distingam as várias partes correspondentes a diversas fases da elaboração do documento. Não se encontravam no núcleo original da carta de Freixo certas cláusulas próprias do foral de Numão: homicídio por altura de concentrações públicas, restituição do furto, a octuplicar, administração da justiça aos “solarengos”, violação do domicílio, juramento em caso de suspeita de delito. Em contrapartida há uma cláusula relativa ao sequestro dentro da própria habitação que apenas se encontra nos dois forais, de Numão e Freixo.
– A mesma versão (A) serviu também de modelo ao foral de Mós, que não reproduz as cláusulas relativas ao medianido e ao montádigo, mas inclui o parágrafo relativo ao juramento por suspeita.
– A versão A deu origem ainda a três outros forais muito parecidos uns com os outros: Trancoso, Linhares e Guarda. Exceptuada a segunda passagem relativa aos solarengos (como autores de homicídio), acompanham em geral o de Numão, até à disposição relativa ao montádigo, omitindo as cláusulas posteriores a esta última.
– Da carta de Freixo derivam as de Urros, Junqueira da Vilariça e Santa Cruz.
– O foral de Linhares originou o de Gouveia e o de Folgosinho.
– A carta de foro de Trancoso foi utilizada como paradigma pelos forais de Moreira, Celorico, e, posteriormente, pelos de Valhelhas , Penedono, Vila Franca da Serra, Castreição e Aguiar da Beira.
– Entretanto, o texto da Guarda forneceu a norma para os de Contrasta, futura Valença, Aguiar de Pena, Touro e Castelo Mendo.
– Uma versão inicial da carta de foro de Valença deu origem ao primeiro foral de Monção, deste se originando o de Melgaço e a forma definitiva do monçanense, que serviria de paradigma ao do extinto concelho de Valadares; derivada de Valença, a primeira versão do foral de Viana deu origem ao de Prado e logo a seguir à redacção definitiva da carta municipal da povoação da foz do Lima; posteriormente surgiria o texto definitivo do foral de Valença, seguido pelo de Pena da Rainha, e, mais tarde, como suas últimas emanações, pelos de Caminha e Vila Nova de Cerveira, enquanto o de Prado servia de modelo ao da Póvoa de Lanhoso.
– Algumas cláusulas, por difusão gradual de certas práticas jurídicas, consideradas mais justas, ou por determinação da lei geral, são, a partir de determinada altura, integradas em alguns forais, independentemente dos seus paradigmas – é o caso da exigência de uma queixa formalizada para que alguém seja obrigado a responder perante os órgãos da justiça, cuja inclusão nos forais se generaliza, a partir de meados da década de trinta, no século XII. Um exemplo desta interpolação é o foral de Constantim, que, segundo sabemos, reproduz o de Guimarães, de 1096 (c.), outro é a confirmação do de Ansiães [1137-1137], onde aparece a seguir à assinatura do notário.