Forais do grupo de Tomar

O primeiro foral conhecido cuja outorga se deve aos templários é o de Redinha. Certo é que este diploma, no foro penal, remete para o de Pombal, o que só pode ter duas explicações: ou se trata de um foral desaparecido, ou então houve uma pequena interpolação no de Redinha, posterior a 1176. Esta última solução parece-me a mais provável, uma vez que a pena a aplicar ao homicídio e ao rouso – inserida, de um modo abrupto na redacção da respectiva cláusula do foro de Redinha – ainda não aparece na carta pombalina de 1174, o que, a existir um foral anterior que a fixasse, constituiria uma regressão inexplicável. Como aliás veremos, o foral tomarense de 1174, transmitido a Pombal em 1176, constituiu uma resposta a essa necessidade de claras normas de procedimento jurídico e penal.

1. Redinha, 1159

 Para além de ser outorgado pelo mestre da ordem do Templo, Gualdim Pais, o foral de Redinha integra-se na tradição foraleira da área de Coimbra, embora contenha alguns pormenores específicos, ajustados à natureza da entidade outorgante ou correspondentes a uma evolução da organização municipal que estava em curso nesta área.

De acordo com a natureza da entidade outorgante, estão as disposições que proíbem doar as terras ou deixá-las em testamento a não ser à Ordem, ou vendê-las, senão a um “vizinho”, de tal maneira que continuem a pagar o mesmo foro; e deste “foro”, ao contrário do que sucedia por todo o lado, não estão isentos nem sequer os clérigos, porque afinal, entendemos nós, não se justificava a subtracção a uns a favor de outros, dentro do mesmo estado eclesiástico.

1.1. Organização local.

Não se faz qualquer alusão à existência de um “concelho”, mas, em contrapartida, em simultaneidade com o juiz, cuja actuação é necessário acatar com o devido respeito – “honorem debitum habeat et suum signum stabile sit” –, refere-se uma entidade plural, justiças, a quem compete velar pela observância do direito entre os cidadãos: “Si quis aliquid tortum alicui fecerit, coram iudice et iusticiis illi satisfaciat sine pecto”. Estas justiças voltarão a aparecer no foral de Tomar de 1174, e seus derivados, sendo bem possível que correspondam à instituição dos “alvazis”, que aparecerão nos forais de 1179.

1.2. Economia e fiscalidade.

Para além disto, o foral de Redinha limita-se a fixar os foros a pagar pelos moradores, que se distribuem por dois ramos de actividade: a agricultura e a montaria, incluindo a recolha de mel e cera. O agricultor (laborator), mesmo que fosse à caça, estava isento dos tributos de montaria.

MAPA TRIBUTÁRIO

ACTIVIDADE

TRIBUTO

Agricultura:

 

de todas as colheitas

1/10

eirádiga

1 teiga de trigo

“serviço”

1 fogaça de 2 alqueires de de trigo, e 1 capão

Montaria:

 

1 noite ou mais no monte

1 coelho com a pele

caça grossa (“venatu”)

1 lombo costal de cada animal

Recolha de mel

1/2 libra de cera

 

        2. Tomar, 1162

         O foral outorgado a Tomar, em 1162, não obstante se ter passado já meio século, é de entre todos o que mais fielmente decalca o foral de Coimbra, de 1111. As pequenas diferenças existentes entre os dois resultam do esmero literário, quiçá da evolução semântica, ou da necessidade de adaptação ao caso específico da outorga de uma carta de foro, pelo mestre do Templo, a uma povoação sob a sua jurisdição, do texto de um foral concedido há muitos anos, por um outorgante régio, a uma cidade próxima.

        Meramente de ordem semântica ou literária podem considerar-se a omissão da referência ao tributo da “cibária”, a pagar pelos peões, substituída pelo reenvio para o uso de Coimbra, assim como a substituição do vocábulo “sculca” pelo de “athalaia”.

Resultantes da necessidade de ajustamento à situação peculiar do município, e especialmente às relações de dependência entre os moradores e a ordem do Templo, são:

– a omissão do imposto régio da “quinta” parte das presas do fossado;

– a supressão do compromisso de nomear o juiz e o alcaide “ex naturalibus”;

– a não referência à possibilidade de os cavaleiros terem herdades onde vivam agricultores como seus dependentes, e de manter em relação a eles um foro judicial próprio;

– a generalização (suposta, aliás, no foral de Coimbra, que expressamente se referia apenas aos infanções) da obrigatoriedade de se submeterem ao mesmo foro dos outros moradores todos aqueles que desejassem possuir casa ou herdade em Tomar;

– a possibilidade reconhecida aos moradores, que desejem abandonar o município, de doar ou vender as suas herdades, sob a condição de o adquirente habitar nelas e respeitar os direitos da ordem: “sit noster homo sicut unus ex vobis”.

Exceptuando o preâmbulo e o escatocolo, em tudo o mais, o foral de Tomar, de 1162, reproduzido pelo de Pombal, em 1174, é igual ao de Coimbra.

3. Tomar, 1174

 Tomar não possuía um tradição jurídica idêntica à de Coimbra. É natural que, no decorrer dos anos, esta carência viesse a acentuar-se, explicando a outorga de um novo foral, em 1174. Este diploma destinava-se a suprir as lacunas do foral anterior, e, por conseguinte, não o substitui, mas completa-o, devendo os dois considerar-se como uma unidade. No de Castelo do Zêzere e outros posteriores, os dois textos fundem-se num só diploma.

O foral de Coimbra de 1111 limitava-se a garantir as liberdades e direitos municipais e a definir as obrigações fiscais. Não continha as normas relativas aos procedimentos judiciais, nem uma tabela de coimas, carências que, segundo observámos, diversos forais tributários do modelo coimbrão foram ultrapassando, fazendo as necessárias adaptações, tanto mais que, é sabido, não se ativeram a uma escrupulosa reprodução de formulários notariais, mas, seguindo a via da memória e da tradição oral, interessaram-se mais pelas realidades que pelas palavras.

Por caminho diferente enveredou o mestre dos Templários, ao outorgar a Tomar, e depois a outras povoações, uma carta de foro decalcada pela de Coimbra. Porque nas margens do Nabão não existia uma tradição jurídica idêntica à de Coimbra – é mesmo provável que uma parte dos povoadores fosse gente desenraizada, vinda de outras paragens –, cedo foi necessário responder às necessidades, que o concelho sentiria, de possuir um núcleo bem definido de normas de actuação e uma tabela de coimas, a que no momento azado pudesse recorrer. Daí que Gualdim Pais, o mesmo outorgante da carta de 1162, com os seu confrades, considerando ser “necessarium (...) rapinas et iniurias a populo nobis subdito misericorditer removere”, decidisse promulgar outra carta, com vários “decreta” para governo dos munícipes – o foral de 1174. Salvo, pois, alguns pormenores, destinados também a colmatar lacunas, o novo diploma destina-se fundamentalmente a fixar normas jurídicas e, para os delitos, as correspondentes penalidades.

        3.1. Economia e encargos tributários.

Não se deixa, porém, de especificar que é de dezasseis alqueires a jugada a pagar pelos peões, e de um em cada dezasseis alqueires o foro a pagar pelos moinhos. Os moleiros, diz-se pela primeira vez, devem respeitar o que acerca da construção das “cambas”, isto é, dos moinhos, lhes for determinado. Esclarece-se também que, por toda a besta de carga que faça transportes de aluguer para eiras ou lagares, fica o seu dono sujeito ao foro de almocrevaria, isto é, terá de fazer ou pagar o correspondente ao serviço de um dia em cada ano.

3.2. Organização local.

O senhor da terra é aqui o mestre da Ordem do Templo, mas as relações entre a Ordem e o município são estabelecidas através do comendador responsável pela casa de Tomar. No texto do foral, o mestre só é citado quando alguém, mordomo ou “justiça”, transgredir os preceitos do foral por venalidade ou por amizades: “si autem maiordomos vel iusticie hoc nostrum directum irrumperit pro ofrecione aut amore alicuius, ipse et res eius sint in potestate magistri et fratrum”.

A autoridade máxima no interior do município pertence ao concelho. O concelho trata dos assuntos de interesse público (por exemplo, como observámos atrás, estabelece directivas sobre a instalação de moinhos), e de tal modo que as querelas entre privados, mesmo quando vierem ao de cima em reunião do concelho, só terão seguimento se o interessado apresentar queixa formal perante o mordomo ou as “justiças”. No julgamento de crimes, só encontramos referência à necessidade de recorrer ao concelho na ocorrência de crimes cometidos por mouros, a que eventualmente possa ser aplicada a pena de morte.

Uma das cláusulas refere-se ao alcaide ou juiz – “Sinal d’Alcaide aut iudicis cum testimonio teneatur” – mas não é claro se a disjuntiva se refere a dois cargos diferentes ou a dois nomes do mesmo cargo (tal como em Seia), segundo parece. Pelo menos, nunca mais, no texto do diploma, se volta a falar do juiz, inclusive em cláusulas onde a menção seria obrigatória, como aquela em que se alude às autoridades a quem pode fazer-se queixa contra autores de furto (“Si quis de domo alterius aut extra domum se per vim acceperit et dominus suus venerit cum rancura ad comendatorem domus vel ad alcaide vel ad iusticias vel ad maiordomum ...”), ou, com maior razão aquela em que se estabelece uma garantia monetária para as autoridades concelhias: “maiordomus et sayon et iustitie et portitor de alcaide sint cautati in D solidos”.

Neste foral aparece repetidas vezes mencionado um órgão plural – justiças – a que tínhamos encontrado a primeira, ainda que vaga, referência no foral de Redinha. Quanto às suas funções, o texto do foral mostra tais “justiças” presentes nas reuniões do concelho, onde se trata dos interesses gerais do município; mais à frente, a receber queixas de particulares contra outros; depois, em simultâneo com o concelho, a fixar critérios sobre a instalação de moinhos, para além daquela cláusula, acima referida, onde se “coutam” como os titulares dos outros cargos do município, e da outra, onde se entregam, com os seus bens, ao braço justiceiro do mestre da ordem, se se deixarem arrastar pela tentação da venalidade ou do compadrio. Quanto ao modo como funcionavam, colectiva ou individualmente, não se encontram dados no texto. O mesmo se diga em relação ao número, se bem que encontremos apenas dois – não hesitemos em aplicar o masculino – a assistir como testemunhas à outorga do foral. Embora um pouco estranha para nós, a designação – os justiças, o justiça – vigorava, infere-se pelo menos do texto do diploma, quando o foral foi concedido a outras terras. Parece, no entanto, que não era difícil rebuscar nas tradições da região outro nome mais sonante, para designar a mesma função, como parece ter acontecido nos forais outorgados a Lisboa, Santarém e Coimbra, dali a quatro anos, conforme a seu tempo veremos.

Pelo mordomo, são tratados, pelo menos em primeira instância, os assuntos da justiça particular, que não necessitam de ir a julgamento das “justiças” ou do concelho, especialmente os delitos comuns mais frequentes. A respeito do saião nada se acrescenta, e quanto ao porteiro do alcaide teremos de aguardar o estudo de outros forais para ficarmos com mais algum esclarecimento, para além daquilo que a expressão, com que o cargo é designado, sugere.

Merece destaque a cláusula relativa ao almotacé, que, segundo é do nosso conhecimento, surge pela primeira vez nos “Decretos” ou Posturas coimbrãs de 1145. O foral de Tomar determina que o almotacé seja do concelho.

3.3. A justiça.

A maior parte das cláusulas do foral de Tomar, de 1174, teve como objectivo o estabelecimento de princípios e normas de actuação, na administração da justiça, e a fixação das coimas correspondentes aos vários delitos.

A razão que fez surgir o segundo foral de Tomar foi, com efeito, a necessidade de os órgãos da justiça local disporem de um código mínimo de leis pelas quais pudessem pautar a sua actuação. Ele reflecte essa preocupação, transformando-se ao mesmo tempo num precioso testemunho da jurisprudência da época:

– Ninguém podia ser condenado, sem previamente ser julgado. Este princípio, geralmente suposto, é especialmente citado para obstar à realização de penhoras que afectassem a casa de um morador: “Domus alicuius non sigilettur nisi antea vocetur ad directum”.

– Os particulares, para que lhes fosse feita justiça, tinham de apresentar queixa explícita (ir com “rancura”), perante o mordomo, os justiças, o alcaide ou o comendador. Como vimos, as entidades que intervêm no plano judicial são fundamentalmente o alcaide ou juiz, os justiças e o mordomo. Não é claro o âmbito de actuação e o limite das competências de cada um destes órgãos, mas, segundo observámos, qualquer um deles podia receber queixas dos particulares, havendo ainda a possibilidade de recorrer ao comendador e ao mestre da ordem.

 – Ao juiz ou alcaide compete chamar os acusados a prestar contas perante a justiça: “Sinal d’alcaide aut iudicis cum testimonio teneat”.

– Ao mordomo compete a decisão sobre todos os assuntos que não exijam julgamento, designadamente nos delitos menos graves, quando o infractor reconhecer a culpa e estiver disposto a cumprir a pena, que de um modo geral consiste no pagamento da coima, e, se for o caso, a fazer a devida reparação dos danos causados. Mesmo assim, o foral estabelece que todas as “intentiones”, isto é, todos os processos executados pelo mordomo se baseassem na “inquisitionem”, isto é, na averiguação dos factos, onde se pudesse recorrer à “exquisitam directam”, ou seja, à audição de testemunhas imediatas dos acontecimentos. O mordomo pode intervir, a pedido dos interessados, na recuperação de dívidas, mas não pode receber, por isso, mais que a décima parte do valor, a não ser em caso de “usura” (empréstimo a juros), porque, nesse caso, receberá a importância que antes tinha combinado.

– Admite-se a intervenção de “vozeiros” (procuradores ou advogados), mas exige-se que tenham “cartam” (procuração), que os habilite a apresentarem-se nessa qualidade, que possuam bens com que possam pagar, e que apresentem fiador, isto como meio de acabar com os que, para obter proveitos, se faziam “vozeiros” falsos, praga que, pelos vistos, enxameava nessa época.

– A testemunha falsa, além de ser obrigada a indemnizar as vítimas dos danos causados pelo seu falso testemunho, tem de pagar uma coima de igual valor e perde o crédito perante a justiça, que a não admite mais a dar qualquer testemunho.

– Admite-se a apresentação de fiadores, que assumem as consequentes responsabilidades.

– Em princípio todas as penas se reduzem a importâncias a pagar pelos delinquentes, mas, em certos casos, prevê-se o recurso ao castigo corporal: quando o autor de ferimentos não indemnizar a vítima, ou quando os salteadores de vinhas e almuinhas não tiverem meios suficientes para pagar a correspondente coima, ou ainda em relação aos escravos mouros.

-  Não incorre em qualquer delito o proprietário de vinhas ou campos, que, em defesa dos seus bens, no próprio acto bata ou cause ferimentos no salteador.


DELITOS E COIMAS

COIMAS

DELITOS

500 soldos  

 – homicídio, rouso e violação do domicílio, no couto da vila

60        »     

 – os mesmos delitos, fora do couto da vila

60        »     

 – mutilação (“membro absciso”)

60        »     

 – lançamento de esterco ao rosto

60        »     

 – reunir parentes, armas ou paus e ferir ou bater com eles

60        »     

 – venda de vinho no período de relego

60        »     

 – agredir com armas, intencionalmente e com ira, no couto da vila

30        »     

 – agredir com armas, intencionalmente e com ira, fora do couto da vila

60        »     

 – roubar, de noite, em vinha ou almuinha alheia (perde também as vestes)

1 maravedi

 – levar coisa furtada, de vinha ou almuinha alheia, em saco ou cesta ou no regaço, ou segar forragem

5 soldos  

 – roubar em vinha alheia, de dia, para comer, ou meter animal na forragema

5 soldos  

 – falsificar medidas

perder os bens (para o mestre ou senhor) 

 – esposa adúlterab

             »

 – moleiro que desrespeita normas sobre a instalação de “cambas” (moinhos)

              »

 – mordomo que não cumpre o direito, por venalidade ou compadrio

dobro do valor

 – extorsões (tomar algo à força dento ou fora da casa da casa de alguém)

perder armas 

 – quem andar com armas dentro da vila, mesmo sem ferir

ao uso da terra 

 – furto

   »          »  

 – cortar estradas públicas do concelho ou caminhos, com vala

   »          »  

 – mudar marcos

castigo físico

 – feridas, ou furtos em herdades, se não puder indemnizar o lesadoc

   »          »  

 – “vozeiro” falso

a) Em  relação a  estes delitos, determina-se ainda que, se  entretanto chegar o dono e  bater no  ladrão ou  o ferir, este continua a ter as mesmas obrigações, enquanto aquele não contrai qualquer coima.

b) Literalmente: “Si quis uxorem suam  iusto iudicio suo adulteram fecit, res sue sint in potestate domini terre”.

c)  Em  relação  às  feridas,  diz  o  texto: “intret in fustam  secundum  veterem  forum  Colimbrie”;  por  furtos em vinhas  ou  almoinhas:  “clavigetur  in  porta per unum diem, deinde flagelletur”; vozeiro falso: “in corpore puniatur”.


4. A influência dos forais de Tomar: Pombal, Castelo do Zêzere, Figueiró dos Vinhos, Ourém, Torres Novas, Arega.

         Pouco antes de aparecer o segundo foral de Tomar, foi o primeiro outorgado, em 1174, a Pombal, que, dali a dois anos, receberia também o segundo foral de Tomar.

         A Castelo do Zêzere, o mestre dos Templários concedeu, já em 1174, uma carta de foro que resultava da junção dos dois diplomas de Tomar. A solução adoptada para o Castelo do Zêzere encontra paralelo no diploma outorgado por Pedro Afonso a Figueiró dos Vinhos.

         A exemplo de Castelo do Zêzere, Ourém, Torres Novas e Arega receberão forais em que se fundem ambos os textos, com a adição de algumas variantes.

         Geograficamente, o de Arega é de todos o mais excêntrico.

         A carta de foro de Abiul remete para os foros de Pombal, em matéria de coimas, enquanto na de Vila Ferreira e Atalaia é evidente a influência dos forais de Tomar, que se deve ter exercido através de Castelo do Zêzere.