O primeiro quartel do século XII testemunha uma intensa actividade nas margens do Mondego e nas suas proximidades. Trata-se de povoar, reorganizar e guarnecer uma região que passava a constituir, durante muitos anos, a mais avançada linha de fronteira com os sarracenos. Viveram-se na área meridional momentos sombrios após a derrota de Vatalandi e a reocupação de Santarém pelos sarracenos, que ameaçavam a cidade de Coimbra. Era urgente fixar homens – cavaleiros e peões – que defendessem com apego as suas terras, e se pudessem congregar numa acção mais vasta, se necessário. Nesse contexto se integra a outorga dos forais de Tentúgal, Sátão, Coimbra, Soure, Azurara da Beira e Tavares, pelo conde D. Henrique, assim como os aforamentos de Santa Comba e Treixedo, pelo abade de Lorvão, e de S. Martinho do Bispo, pelo prelado conimbricense.
1. Santa Comba e Treixedo, 1102
O mais antigo diploma desta série é a “carta moris” passada, em 1102, aos moradores de Santa Comba e Treixedo, pelo abade do mosteiro de Lorvão, que documenta uma fase do repovoamento da região de Coimbra. O abade declara que está consciente do papel do mosteiro, tendo promovido a fixação de colonos, para construírem, habitarem e plantarem naquelas vilas – os dois monges que iniciaram o processo de povoamento, assinam também o documento –, e que procedeu à edificação de torres, e de outras obras necessárias quando se povoam terras ermas. Com eles acordou na escolha deste foro, para vigorar perpetuamente.
1.1. Organização administrativa
Pode, à primeira vista, dar a impressão de que se trata de uma simples carta de aforamento. No entanto, o documento contém cláusulas que ultrapassam as de um contrato desse tipo. Com efeito, reconhece-se a existência de governantes ou juízes da terra e é a eles que o documento é confiado: "Hos nos supradicti prior laurbanensis cenobii et fratres simul secundum temporis qualitatem statuimus atque confirmandum rectoribus terre, sive iudicibus stabiliter tradidimus”. Aliás, a forma, que o documento apresenta, de pacto ou “fori conventio” com uma determinada população, só é eficaz, quando esta é representada por um órgão colegial, de indiscutível valor, capaz de assumir responsabilidade moral e jurídica, embora não haja qualquer referência expressa à sua existência.
1.2. A sociedade.
A população destas vilas é constituída por cavaleiros vilãos e peões.
1.3. Fiscalidade.
Somente os peões são tributários. Pagam anualmente, a cibaria, isto é, por cada boi que possuam, o imposto de dois quarteiros de pão, em partes iguais de trigo, centeio e milho, e, se cultivarem legumes, dão também um alqueire.
Os habitantes que se ocupam na montaria são tributados num lombo de cada animal (“veado”) que apanharem, e, dedicando-se à caça do coelho, darão um destes animais por cada quinze dias que andarem no monte.
1.4. Propriedade.
Aos moradores impõe-se, a nível do direito de propriedade, a proibição de alienar de qualquer modo as suas herdades, senão a favor do mosteiro ou de algum dos seus tributários, sob pena de as perderem.
2. Tentúgal, 1108
É costume dar a maior parte dos forais de que tratamos neste capítulo como derivados do de Coimbra, de 1111, embora dois de entre eles se apresentem com datas anteriores, um deles, aliás, – o de Tentúgal – quase sem fazer mais que confirmar a aplicação local dos foros em vigor na cidade do Mondego. Mas, se é flagrante o parentesco que se evidencia entre a maior parte destes diplomas, é também indubitável o papel desempenhado por um centro regional de tão grande importância como a cidade de Coimbra, na elaboração do direito local e na sua irradiação. É pois natural que a matriz comum esteja em grande parte nos antigos usos e costumes desta cidade, já subjacentes ao foral de Coimbra, de 1085. Face à ausência de disposições jurídicas e administrativas concretas no “foral” coimbrão de 1085-1087, apenas assim se compreende que o “foral” de Tentúgal estipule que os seus habitantes “habeant omnes foros quos in Colimbrie currerint”.
2.1. Sociedade.
Extremamente lacónico, este diploma deixa-nos saber apenas da existência de estratos sociais hierarquizados – maiores, mediocres, minores, subiecti – que, no preâmbulo, considera naturais, e, concretamente, refere-se aos cavaleiros (miles), aos monteiros e a outros.
A ser original, encontra-se neste documento a mais antiga referência aos besteiros. É, no entanto, possível tratar-se de uma interpolação feita poucas décadas após a redacção do texto primitivo, quiçá no momento em que ganhou forma a mais antiga versão actualmente conhecida.
3. Sátão, 1111
Na primavera de 1111, deteve-se em Sátão D. Henrique, quando se encaminhava para o sul, para acudir aos problemas que se avolumavam na área meridional do condado, onde após a derrota de Vatalandi, Santarém recaía nas mãos dos sarracenos. Em Coimbra, a população havia-se sublevado contra as autoridades condais. Em Sátão estabelecera-se já uma povoação de agricultores, uns concentrados nas moradias do aglomerado populacional e outros a habitar as “vilas” dos arredores. Os zalatanenses acolheram afavelmente D. Henrique. O conde testemunhou-lhes o seu reconhecimento, no prólogo da carta de foro: “Placuit nobis (...) ut demus vobis forum bonum pro capud et honore quo fecistis super nos primo et collegistis nos in vestra kasa proinde ponimus vobis foro per ubi andetis et non exeatis de illo nec vos nec semini vestro”.
3.1. Organização administrativa.
O órgão máximo na hierarquia da comunidade era o concelho, constituído pelos homens-bons. Os delitos eram julgados por um grupo de quatro ou cinco desses homens-bons, sob a presidência do juiz. Embora o texto do foral não seja claro a esse respeito, a posterior confirmação afonsina esclarece que tanto o juiz como o saião saíam da gente já radicada na vila, e que, do mesmo modo, não lhes seria dado por senhor senão aquele que os moradores quisessem.
3.2. A sociedade.
A população de Sátão é constituída por duas classes de moradores, classificados, conforme as suas aptidões militares, em peões e cavaleiros vilãos.
O direito de propriedade particular não sofre qualquer restrição.
3.3. Economia e fiscalidade.
Cultivam-se os cereais (trigo e centeio), o linho, a vinha e as hortofrutícolas. Os peões, de jugada, pagam um moio de cereal (sendo a terça parte de trigo), se tiverem um boi para lavrar, ou dois moios, se tiverem mais. Do vinho, do linho e das favas (o vocábulo deverá englobar em primeiro lugar o que hoje chamamos feijões), pagam a sexta parte.
Pelo exercício da caça de “peias”, dão dois lombos, e, de “morada”, isto é, pela permanência no monte superior a um dia, um coelho.
Dos impostos estão isentos os cavaleiros, mesmo se
emigrarem ou se lhes morrer o cavalo, enquanto não adquirirem outro, no espaço
de três anos. Esta isenção é extensiva à viúva e aos filhos órfãos.
MAPA
TRIBUTÁRIO DE SÁTÃO
ARTIGOS |
TRIBUTOS |
Agricultura |
|
com 1 boi |
1 moio – 1/3 de trigo |
com 1 jugo |
2 moios – 2/3 de “segunda” |
vinho |
1/6 |
linho |
1/6 |
favas |
1/6 |
Caça |
|
“peia” (caça grossa) |
2 lombos |
coelhos (“de morada”) |
1 coelho |
4. Coimbra, 1111
A outorga do foral de Coimbra, em 26 de Maio de 1111, foi precedida de uma perturbação local da ordem pública, da qual não temos quaisquer outras notícias, além das lacónicas informações contidas no documento. A população levantou-se exaltada contra a autoridade condal e D. Henrique teve de encetar negociações, provavelmente a partir de Sátão, para apaziguar os ânimos e ver a sua autoridade reconhecida. Como uma das causas remotas dessa excitação, pode ver-se o descontentamento que desde há anos lavraria na cidade entre os partidários do grupo mozárabe, contra os defensores da reforma gregoriana, conotados com os mais recentes ádvenas, de origem francígena. Das negociações resultou o foral de 1111, em cuja assinatura estiveram presentes os mais directos colaboradores de D. Henrique e os componentes do concelho de Coimbra: “Qui presentes fuerunt omnem scolam comitis et omnem concilium Colimbrie”.
Algumas cláusulas do foral podem lançar um pouco de luz sobre as origens próximas da sublevação. D. Henrique garante que não colocará em Coimbra nem Mónio Barroso nem Ebraldo, o que denota trata-se de dois personagens – magnates ou funcionários – contra os quais havia profundos ressentimentos. Uma outra cláusula proíbe os cavaleiros de fora da cidade de entrarem na casa dos moradores, sem o seu assentimento. Os infanções não podem ter casa em Coimbra, a menos que aceitem integrar-se nos esquemas gerais da vida local. Outros parágrafos estabelecem que Coimbra não será dada em alcavala, que o juiz e o alcaide seriam naturais de Coimbra, e que os moradores não tinham obrigação de pagar qualquer “offrecione” pela sua nomeação, do mesmo modo que nada tinham a dar de portagem, de alcavala ou de comedoria (cibaria) aos guardas das portas e da cidade. Em suma, libertam-se os moradores de um conjunto de opressões fiscais, que certamente constituíam o pomo da discórdia, e estiveram na origem de outras prepotências exercidas pelos funcionários do estado, designadamente no âmbito da acção policial e da administração da justiça: o saião não poderá entrar nas casas para selar os bens de quem quer seja, mas na ocorrência de qualquer delito será ouvida a sentença do concelho.
O foral descreve, portanto, mediante a apresentação deste quadro, em negativo, os problemas que nessa sombria primavera de 1111 se apresentaram a D. Henrique.
A agravar todos essas dificuldades, e a avolumar-lhes as proporções, somava-se talvez a carestia dos géneros alimentares, requisitados pelos militares que tentavam opor-se ao avanço dos sarracenos e a consequente subida de preços, como se não bastasse a morte de alguns dos seus melhores homens, vítimas da ofensiva muçulmana, cujo avanço continuava iminente, e o descontentamento motivado pelas ausências do seu mais alto chefe nesses momentos de apreensão e angústia.
Pela razões apontadas, o foral limita-se a garantir os direitos e liberdades ameaçadas, e, entre elas, a fixar as obrigações fiscais dos conimbricenses e dos agricultores de uma área das redondezas (“homines de Bolon”). Da sua leitura podemos todavia recolher importantes dados sobre a organização municipal e a sociedade coimbrã, ao iniciar-se a segunda década do século XII.
4.1. A sociedade.
A população da cidade é constituída por estratos sociais diferenciados, os maiores e os menores, entre os quais se mencionam expressamente:
– os cavaleiros (milites), cuja existência era importante numa cidade situada na área meridional do reino, constituindo, durante muitas décadas, a única posição urbana firme, frente ao inimigo sarraceno; as propriedades dos cavaleiros estão isentas de toda a qualidade de impostos (incluindo-se as que adquirirem por compra ou por casamento com a filha de um “tributário”), e, “tam in villis quam in munitionibus”, os “jugários” que as cultivarem apenas deles dependem, mesmo em assuntos de justiça; estes privilégios mantêm-se, mesmo quando o cavaleiro perder o cavalo, enquanto não puder adquirir outro ou, por carência de recursos próprios, lho der o rei, ou quando se retirar da militância activa, na velhice, e transmitem-se à sua viúva;
– os peões (pedites), entre os quais se distinguem, em primeiro lugar, os tributários que cultivam as suas próprias herdades, e, se tiverem os meios necessários (para adquirir cavalo), podem ascender à categoria de cavaleiros, passando a beneficiar do mesmo estatuto;
– os jugários que amanham propriedades dos cavaleiros;
– os clérigos, que gozam do mesmo estatuto dos cavaleiros em relação às habitações e propriedades agrícolas;
– os almocreves.
A possibilidade de ascensão à categoria de cavaleiros, e de consequente promoção social aberta aos tributários de Coimbra, acompanhada das correspondentes isenções fiscais, está relacionada com a posição estratégica da cidade, onde era necessário fomentar a fixação de moradores, e o acréscimo do número de homens capazes de pegar em armas para acorrer em defesa da fronteira, o que implicava cada vez maiores riscos, sobretudo após o avanço muçulmano de 1110-1111. Tenha-se em vista a distribuição, estabelecida pelo foral, dos encargos com a manutenção de vigias nos lugares mais avançados: “sculcas ponamus nos medietatem anni et vos medietatem”.
4.2. Fiscalidade.
São essas preocupações, agregadas à vontade de acalmar os ânimos e conquistar os corações, após o conflito a que se punha termo, que explicam outras concessões feitas por D. Henrique aos moradores de Coimbra, no sentido de aliviar a carga fiscal a que estiveram sujeitos, e fixar, sem margem para dúvidas, as taxas a pagar. Assim
– estabelecem-se isenções em relação aos rendimentos agrícolas dos cavaleiros, ao maninhádego, à obrigação de fazer ou cultivar as searas reguengas, e aos ibiçãos ou jumentos; não há também lugar ao pagamento de portagens, alcavalas ou comedorias (cibarias) nas portas da cidade, nem de gratificações (“offrecione”) na nomeação do juiz e do alcaide;
– certas acções bélicas consideram-se actividades lucrativas, e como tais são taxadas: a quinta parte das presas do fossado e da azaria, e metade da azaga;
– os almocreves são obrigados a fazer um serviço por ano;
– as azenhas pagarão a décima quarta parte;
– reduz-se a metade o imposto de jugada, pago em cereais, estabelecendo-se a medida a utilizar (“Pedites de ratione quam solebant dare de cibaria dent medietatem per quartario de XVI.m alqueires sine brachio posito et tabula”);
– fixa-se num oitavo o imposto a pagar pelo vinho, assim como pelo linho e pela madeira ou lenha que se levem para vender na cidade;
– ainda em relação ao vinho, limita-se a um almude o imposto de lagarádiga, quando a produção for abaixo dos cinco “quinales”, e, daí para cima, à quarta parte da colheita;
– na parte final, quase ao modo de adenda, em vez da cornaria (que deverá corresponder à jugada acima referida), fixa-se também na quarta parte o tributo a pagar pelos homens de Bolão (os agricultores de uma importante área agrícola nos arredores de Coimbra).
4.3. Organização administrativa.
Quanto à organização da vida urbana, o foral ajuda-nos a reter que
– Coimbra não terá outro senhor, a não ser o rei, uma vez que não poderá ser dada em “alcavala” ou préstamo a ninguém – esta disposição rompe uma tradição que vinha desde o conde Sisnando, dadas as especiais condições em que este recebeu o governo da cidade e arredores;
– o concelho é o órgão máximo no governo da cidade, competindo-lhe o julgamento de todos os delitos mais graves;
– o juiz é escolhido entre os moradores;
– esta exigência aplica-se também ao alcaide;
– o saião fará a participação, ao concelho, dos delitos que impliquem a aplicação de coimas.
4.4. Justiça
Pelas
razões já conhecidas, o foral não inclui outras normas jurídicas, nem o elenco
das “coimas”, ao contrário do que sucede com outros diplomas desta natureza.
MAPA TRIBUTÁRIO DE COIMBRA
ARTIGOS |
TRIBUTOS |
“cibaria” (jugada) |
reduzida para metade * |
vinho – lagarádiga |
1 almude: colheita inferior a 5 quinales |
|
1/4 da colheita superior a 5 quinales |
vinho – venda |
1/8 |
linho – venda |
1/8 |
lenha ou madeira – venda |
1/8 |
azenhas |
1/4 |
azaga |
1/2 |
azaria |
1/5 |
presas do fossado |
1/5 |
almocreves |
1 serviço por ano |
* A determinação relativa aos homens do Bolão, diz que não paguem “cornaria”, mas sim a quarta parte, o que tanto pode entender-se da colheita como da jugada anteriormente referida.
5. Soure, 1111
Apesar dos condicionalismos específicos que lhe deram origem, o foral de Coimbra ia conhecer uma grande difusão. No mês seguinte ao da sua outorga foi redigido o de Soure. É possível que um foral idêntico, se não o mesmo, fosse na mesma data outorgado a Montemor-o-Velho. Neste, de Soure, o escatocolo, antes do notário e após a lista dos confirmantes, regista em primeiro lugar a presença do concelho de Montemor: “Et concilio de Monte Maior et de Saurio et scola comitis”. A instituição municipal existia, por conseguinte, e o foral, se efectivamente foi escrito, desapareceu nas décadas seguintes.
O foral de Soure reproduz, com pequenas variantes, o foral de Coimbra.
5.1. Organização administrativa.
Fala-se de juízes e não do juiz e do alcaide, na cláusula que determina a sua escolha entre os moradores locais. Embora não a possamos excluir como hipótese, isso não implica a existência de mais que um juiz, pois o facto da sua nomeação temporária (um juiz, durante um determinado tempo, a que se segue outro) basta para justificar o uso do plural. A existência do alcaide, por seu lado, é referida numa outra cláusula.
5.2. Fiscalidade
Se por um lado se não refere a isenção do maninhádego, também se não restringe a obrigação dos almocreves a prestar apenas um serviço por ano, o que é sinal da falta de significativa expressão local desta actividade. Por idênticas razões se não fixa qualquer imposto sobre as azenhas, o linho e a lenha ou a madeira. A taxa sobre o vinho, que era de um oitavo em Coimbra, desce para um décimo em Soure. A discrepância estará em relação com as menores aptidões vinícolas dos terrenos e sobretudo com a preocupação de conceder atractivos para fomentar o arroteamento das terras.
MAPA TRIBUTÁRIO DE SOURE
ARTIGOS |
TRIBUTOS |
“cibaria” (jugada) |
reduzida para metade |
vinho – lagarádiga |
1 almude |
vinho – venda |
1/10 |
|
1/8 |
fossado (presas) |
1/5 |
azaga |
1/2 |
azaria |
5/9 |
Pelos mesmos motivos, numa área onde a superfície inculta seria ainda extensa – pratica-se a montaria, assim como a recolha do mel e da cera – o rei compromete-se a garantir vigias para as muralhas, e a sua sustentação, deixando a cargo dos moradores a vigilância dos campos: “Sculcas omnes ponamus nos integras per totum annum et vos omnes arrotovas. Non detis (...) cibariam custodibus muri”.
6. Azurara da Beira [1102-1112]
Enquadra-se no mesmo ambiente histórico a concessão de foral a duas áreas localizadas no alto Mondego, correspondentes ao actual concelho de Mangualde: Tavares e Azurara da Beira.
Estes documentos levantam alguns problemas de datação. De qualquer modo, a elaboração do foral de Azurara situa-se entre os anos de 1102 e 1112, e a do foral de Tavares, entre 1104 e 1114, se bem que a indicação de que o castelo de Tavares se situa no extremo, entre mouros e cristãos, corresponde à situação que se vivia na região a seguir a 1111, e, por outro lado, o foral de Azurara se apresenta com um pano de fundo semelhante.
6.1. Organização administrativa.
À primeira vista, o diploma de Azurara da Beira apresenta-se como uma simples carta de aforamento, pois não faz clara referência a qualquer órgão de administração ou de governo local. No entanto a carta é dirigida às “populationes” de Azurara, como se elas constituam uma unidade; estabelece-se o privilégio de couto e a consequente proibição de qualquer estranho aí entrar na perseguição de servos fugitivos ou de homicidas ou com intentos semelhantes (relacionados com a justiça), sinal da existência de foro próprio, mas, sobretudo, revela-se que em Azurara se julgam os delitos aí cometidos e se pagam as respectivas coimas: “calumpnia que ibi exierit per directum iudicium, mediam partem leyxe pro anima de comite”.
6.2. A sociedade.
A sociedade local de Azurara é também constituída por cavaleiros vilãos e peões.
Os cavaleiros vilãos, que, se lhes morrer o cavalo, são obrigados a adquirir outro, no prazo de três anos, estão isentos do pagamento de impostos sobre os rendimentos agrícolas (jugada) e sobre a caça, e das portagens, e podem dispor das suas propriedades (vender) sem qualquer restrição.
6.3. Fiscalidade.
Os peões estão sujeitos ao pagamento do seguinte foro: um moio de pão terçado por jugo, ou dois quarteiros, isto é, metade de um moio, por cada boi, enquanto pelos ibiçãos estão isentos; a décima parte do vinho e do linho.
Pratica-se a montaria, e sobre ela recai a obrigação de dar um lombo de cada veado, duas costas de cada javali, e, dos coelhos, um, de “morada” (cf. supra).
O direito de propriedade não sofre restrições em relação ao cavaleiro vilão, que a pode vender, sem qualquer “foro” ou encargo, enquanto que a propriedade vendida pelo peão continuará sujeita à obrigação da décima.
6.4. Justiça
Embora com algumas diferenças, o foral de Azurara
mostra uma grande afinidade com os outros forais da região de Coimbra sobre os
quais já nos debruçamos, e essa afinidade revela-se também na ausência de
normas jurídicas e de tabelas de coimas. A única penalidade especificada
destina-se a sancionar o estatuto de couto, prevendo a pesada multa de mil e
quinhentos moios para os transgressores, ou, na falta de pagamento,
especialmente, quando se tratar da perseguição a homicidas ou servos fugitivos,
a perda das mãos ou dos olhos.
MAPA TRIBUTÁRIO DE AZURARA E DE
TAVARES
ARTIGOS |
TRIBUTOS |
|
|
Azurara |
Tavares |
Agricultura: |
|
|
1 boi |
2 quarteiros |
3 sesteiros (=2 quarteiros) |
1 jugo |
1 moio (= 4 quarteiros) |
(independentemente do número de bois) |
vinho |
1/10 |
1 puçal, desde que colha cinco quinales |
linho |
1/10 |
1 manelo, desde que colha quatro manelos |
Caça |
|
|
geral |
1 lombo de veado |
1 lombo, de “peias” |
porco (javali) |
2 costas |
4 costas |
urso |
– |
1 mão |
coelhos |
1 coelho, de “morada” |
1 coelho,de “apeiro”, a partir de 3 noites |
Mel |
– |
1/2 canada |
7. Tavares [1104-1114]
7.1. A sociedade.
A cláusula do foral de Azurara a que nos referimos em último lugar era de molde a favorecer a ocorrência e a fixação de homiziados, mas também a de servos, decididos a pôr termo à sua situação de dependência. Documenta-se, deste modo, um importante movimento em curso, tendente a acabar com a mancha da escravidão. Tal movimento é claramente referido na carta de foro de Tavares. Esta área é importante, devido à sua localização numa linha de fronteira, “in extremo”, e aí, vinca o foral, existe um castelo que fica entre mouros e cristãos, e, por tal razão, é necessário que esteja bem provido de gente. Afluem a Tavares servos e legítimos, pessoas cuja liberdade estava limitada por laços de dependência pessoal, que pedem “bonos foros per ubi pobulent illum”, de tal maneira que possam andar à vontade por todo o lado, sem que os inquietem, e por isso querem aceder ao estatuto de homens livres: “volent proinde ingenuos esse”. O foral estabelece, pois, que os servos e os “legítimos” sejam admitidos a povoar o castelo.
A
população de Tavares, além dos peões, que não seriam apenas os que ao lá
entrar ascenderam à categoria de “ingénuos”, integra também cavaleiros. Curiosamente,
não se mencionam os privilégios ou isenções fiscais dos cavaleiros, supostos no
entanto pela cláusula que faz depender a permanência no seu estatuto peculiar
da posse de cavalo, que, uma vez morto, tem de ser substituído no prazo de três
anos.
7.2. Fiscalidade
Os impostos esclarecem-nos igualmente sobre as actividades e recursos da população. Os moradores vivem da agricultura e da caça.
Os agricultores que utilizarem gado bovino na lavoura, pagarão três sesteiros, isto é, meio moio, independentemente do número de cabeças que possuam; de vinho darão, a partir de cinco quinales, um puçal; de linho, um manelo, se colherem mais de quatro.
O direito de propriedade sofre duas espécies de restrições: quem pretender abandonar Tavares, para habitar outra terra, dará um bragal ao senhor, após a venda da sua herdade; quem pretender vender parcelas da herdade, pode fazê-lo, desde que “fogueira não mate”, isto é, não venda tantas parcelas que isso implique a extinção do casal.
As actividades de montaria englobam a caça e a recolha de mel. O imposto sobre a recolha do mel é de meia canada. A um imposto geral, com que é tributada a caça grossa, de “peias”, acrescem mais quatro costas de cada javali e uma mão de cada urso; a caça do coelho é taxada com o pagamento de um coelho de “apeiro”, pela “morada”, ou seja, pela permanência em monte, por um período que englobe mais de três noites.
De
todos os lucros ou ganhos obtidos fora da vila – talvez negócios, mas sobretudo
as razias em terras de sarracenos –, os moradores descontavam metade. Esta cláusula
aparecerá substituída numa cópia mais tardia.
7.3. Organização administrativa.
Ao contrário do que sucedia com a vizinha Azurara, no foral de Tavares citam-se expressamente os órgãos de autoridade local:
– o senhor, que recebe os impostos, uma percentagem das coimas, e mais um bragal – o que simboliza e recorda os seus direitos sobre a propriedade –, quando um morador, decidindo abandonar o local, vende a sua herdade;
– o concelho, de quem depende a resolução dos problemas internos do município, designadamente as questões de justiça – o que no texto do foral é referido a propósito da obrigação e direito de lhe endossar a resolução dos problemas de fianças e penhoras com habitantes de outras localidades situadas fora do couto, e de partir a meio com o senhor os dez quarteiros que recebe pelos julgamentos, “de iudicio infiado”;
– o juiz;
7.4. A justiça.
O
facto de se tratar de uma população sem tradições locais justifica que, ao
contrário do que sucedia com os outros municípios da região de Coimbra, até agora
analisados, a carta de foro inclua o elenco das coimas com que eram penalizados
os moradores pelos principais delitos, e que se escalonam da maneira seguinte:
DELITOS E COIMAS
COIMA |
DELITO |
100 moios |
homicídio do juiz ou do saião |
50 » |
homicídio de vizinho |
50 » |
rouso |
5 quarteiros |
ferimentos |
Entre o homicida e o rousador, coloca-se o “anaziador”, autor de um delito, ao qual se aplica a pena de apreensão de todos os bens.
A apresentação a um concelho fora do couto de um caso de justiça que envolvesse queixa contra uma penhora ou uma exigência de fiança, feitas indevidamente, trazia como consequência a perda do direito a receber esse valor em duplicado.
Finalmente observe-se que a pena aplicada a quem violasse o estatuto de couto do município era de quinhentos moios de pão, consideravelmente inferior à de Azurara da Beira.