Primeiros forais

1. S. João da Pesqueira e outros [1055-1065]

     O mais antigo foral outorgado a povoações localizadas dentro das actuais fronteiras de Portugal é o de S. João da Pesqueira e vilas circunvizinhas. Interessa-nos o seu estudo, especialmente porque ele é o cordão umbilical que estabelece a ligação entre os forais portugueses e os seus precedentes, entre os nossos municípios e os seus vizinhos do outro lado da fronteira: os municípios leoneses. Além de ser o mais antigo foral de outorga régia, a sua importância é acrescida pelo facto da vigência e influência posterior, dado que foi confirmado repetidas vezes, com outorga a várias localidades, e parte das suas cláusulas repetir-se-ão em forais posteriores da Beira Alta e de Trás-os-Montes.
     A concessão deste foral dá-se quando no ocidente peninsular se iniciava uma nova fase da reconquista: a reocupação do território situado entre os rios Douro e Tejo, na qual se enquadram as conquistas de Lamego (1057) e Viseu (1058), e ainda a de Coimbra (1064), assegurando o domínio da linha do Mondego.
     O texto é apenas conhecido através da sua inserção em confirmações posteriores, sendo difícil precisar o território que abrangia. Com efeito, é confirmado a um conjunto de localidades, ora simultânea, ora isoladamente. No preâmbulo dessas confirmações, refere-se como destinatário do foral originário, umas vezes, isoladamente, S. João da Pesqueira, neste caso, sem descrever o termo; outras vezes, em conjunto, uma série de localidades, mais ou menos confinantes, de um e outro lado do Douro, colocando em primeiro lugar S. João da Pesqueira, seguida de Penela, Paredes, Linhares e Ansiães, embora a confirmação se destine apenas a uma localidade, cujo termo se descreve, como sucede com Ansiães, com Penela e com Paredes. Num dos casos, inclui-se entre esse conjunto de localidades também a de Souto, que é precisamente aquela à qual a confirmação se destina.

     1.1. A ocupação e ordenação do território.

     A dificuldade em precisar a área geográfica é devida não a uma simples carência de elementos documentais, mas sobretudo a uma perspectiva de organização do espaço bastante diferente da actual. Com efeito, a delimitação do termo por linhas e marcos ou pontos de referência muito rigorosos só a partir desta época se generalizará, conforme avança a ocupação do território, e, para o efeito da delimitação de jurisdições, e, especificamente, de cobrança de impostos e dízimas, a organização administrativa civil e eclesiástica.
     Numa fase inicial do povoamento, que se difunde a partir dos finais do séc. X, os colonos ocupam um espaço vagamente definido, que se polariza na vila, aldeia, ou povoação, cuja autoridade máxima é o concilium. A vida destas comunidades resulta de um certo equilíbrio e complementaridade entre a agricultura e a ganadaria, e, em certos casos, a caça e a pesca. Os moradores de S. João da Pesqueira e áreas circunvizinhas cultivavam o trigo, o centeio e a cevada, tinham o seu gado, davam uma peça dos cervos, ursos e javalis que caçavam, faziam montaria com o rei ou seu vigário, tinham uma pesqueira nova e outras mais antigas.
     O espaço aparece distribuído por várias zonas que se podem esquematizar num diagrama com vários círculos. No interior situa-se a aldeia, constituída pela casas, tendo em contiguidade uma reduzida parcela de terra, quase sempre vedada, de exploração permanente, a cortinha, destinada ao cultivo da horta e de alguns cereais. O círculo envolvente é formado pelo espaço agrícola, inicialmente de propriedade colectiva ou comunitária, embora de usufruto individual, mesmo quando a lavoura se faz com a participação dos vizinhos. No círculo exterior encontra-se o bosque, fruído livremente por todos e cada um dos moradores, o qual constitui a área mais extensa, embora em diminuição gradual, conforme o crescimento demográfico e as consequentes necessidades cerealíferas da comunidade.
     A partir de uma determinada altura, no decorrer do séc. XI, assiste-se a uma evolução que tende ora para a fragmentação – e leva ao aparecimento dos casais e solares, na Galiza e em Castela – ora para a compactação, mais frequente na área da meseta. Neste caso, os campos individualizados de cereais deixam de estar integrados no aglomerado que constitui a vila ou aldeia, onde apenas subsistem as moradias e as hortas; a cultura cerealífera faz-se nos campos, agros ou sernas exteriores à aldeia, repartindo o espaço com as vinhas, enquanto é cada vez mais cerceado o espaço do bosque.
     O foral de S. João da Pesqueira terá sido outorgado inicialmente apenas a uma comunidade, eventualmente a duas, então muito afins, uma a norte e outra a sul do rio Douro. O texto leva a crer que ele foi concedido a uma localidade sediada nas proximidades de um curso de água, onde se instalou uma nova pesqueira, a somar a outras mais antigas – “de ipsa piscaria det mediam partem ad palacium et de aliis antiquis quarta ubi labor nichil” –, o que é imediatamente aplicável a S. João da Pesqueira, como sugere a própria toponímia, excluindo, num primeiro momento, a existência de outras povoações que de facto não possuíam idênticas condições para se dedicarem à mesma actividade.


     A pressão demográfica, neste como noutros casos, fez surgir novos aglomerados de habitações no território anteriormente polarizado numa só vila ou aldeia. É natural que de início as aldeias incipientes se considerassem parte da anterior comunidade e que, portanto, se integrem nos seus esquemas de funcionamento, obedecendo ao mesmo estatuto social e jurídico. Mais tarde, o continuado crescimento e as exigências administrativas obrigaram a uma diferente organização local, provocando o desmembramento definitivo das novas comunidades, acompanhado da definição precisa do termo geográfico.
     Tal processo de segmentação, dando origem a novos municípios, ter-se-á verificado, desde finais do século XI até aos começos do século XIII, na área de Ansiães-Pesqueira. Nos primeiros decénios do século XIII, encontramos claro testemunho deste tipo de organização – várias aldeias, dotadas de uma certa autonomia, na órbita de uma vila central – nos foros de Castelo Rodrigo, área onde aliás se verificará um processo idêntico, originando novos municípios, com a duplicação dos mesmos foros, acompanhada da definição do termo geográfico. Assim se explica que na confirmação do foral de S. João da Pesqueira, apenas esta localidade apareça como objecto do diploma outorgado por Fernando Magno, enquanto nas confirmações destinadas a outros municípios se apresenta como antecedente um documento – no fim de contas o mesmo – respeitante a várias localidades. Explica-se igualmente que, sem que tal procedimento se possa considerar uma falsificação (como sucederia se olhássemos as coisas por uma óptica moderna), no conjunto dos municípios destinatários da outorga de Fernando Magno, ao confirmar o foral de Paredes como foral do novo município de Souto, se introduza também o nome desta localidade.

     1.2. Organização social.

     A evolução demográfica que leva à criação de novos municípios dentro da mesma área é acompanhada de outras transformações, designadamente em relação ao direito de propriedade e ao estatuto social dos moradores.
É bem claro, no foral, o reconhecimento do direito de propriedade individual em relação às herdades, isto é, em relação às terras de cultivo localizadas na órbita da povoação. Uma prática diferente é suposta num foral da mesma época, o de Santa Cristina, em Zamora, concedido por Fernando I, em 1062.
     Como se compreende, por razões cronológicas e geográficas – a mesma época, o mesmo outorgante, duas regiões relativamente próximas –, é com esta carta de foro que a de S. João da Pesqueira tem mais pontos de contacto. Por trás de ambas, no que a algumas matérias diz respeito, estão os foros de Leão, de 1020. Não devemos esquecer a disposição do parágrafo 8 do concílio de Coiança: "ut in Legione, et in suis terminis, et in Gallaecia, et in Asturiis, et in Portugalle, tale sit iudicium semper, quale est constitutum in decretis Adephonsi Regis pro homicidio, pro rauso, pro sagione, aut pro omnibus calumniis suis".  O foral de Santa Cristina, pela sua brevidade, não fornece muitos elementos para ser colacionado com o de S. João da Pesqueira, mas não faltam os aspectos coincidentes.
     Encontramos em ambos, para referir o tributo a pagar anualmente ao rei, a mesma designação de “parada” (paratam) que voltaremos a encontrar noutros forais das margens do Douro e de Trás-os-Montes, nos séculos XII e XIII.
Embora seja muito semelhante a disposição relativa à obrigação do “apelido”, no foral duriense, ao contrário do zamorano, não se faz qualquer destrinça entre peões e cavaleiros.
     As diferenças sociais existiam, como indiciam algumas cláusulas do foral. A distinção entre homens “menores” e “maiores”, isto é, de estatuto social mais ou menos elevado, com que depararemos em forais de Coimbra, é também mencionada aqui, numa cláusula a propósito do novo casamento de uma viúva.

     1.3. Organização administrativa.

     Ao contrário do que observou J. A. Garcia de Cortázar, em relação a outras povoações localizadas entre o Cantábrico e o Douro, no foral de S. João da Pesqueira supõe-se a existência de uma rede de castelos, entre os quais os vizinhos podem ser chamados a conduzir presos ou a levar correio. Esses castelos não resultaram, porém, da compactação dos aglomerados, mas constituíram uma resposta à pressão muçulmana. Recordam-nos, ao mesmo tempo, uma outra força externa – o poder civil –, que afecta a organização do espaço, e que, neste caso, é estimulada a agir face à existência de um inimigo exterior, contra o qual, mesmo quando se não combate, é necessário precaver-se, criando órgãos de defesa e dando segurança, para as consolidar, às povoações, que poderão vir a ser integradas em áreas administrativas mais ou menos vastas – as terras ou tenências.
     No vértice da organização administrativa encontra-se o rei, eventualmente representado pelo seu vigário. O palácio engloba as estruturas através das quais se faz sentir localmente o poder central, e o seu funcionamento é garantido pela actuação do saião e do mordomo. A recolha dos impostos é feita pelo mordomo (a quem o diploma só uma vez se refere, sem especificar as suas funções).
     O concelho é o órgão máximo da hierarquia dentro da comunidade, de que é interlocutor perante o senhor (o rei) e o bispo. O foral não fornece, todavia, quaisquer dados sobre a sua composição, deixando-nos sem saber se é constituído apenas pelos “maiores” ou se nele entravam outros vizinhos.
     A influência da organização eclesiástica é significada pela existência de uma igreja, na qual se centra a vida religiosa da comunidade. O foral de S. João da Pesqueira dispõe que em relação à igreja se entenda o “concelho” com o bispo.

     1.4. Obrigações fiscais.

     A comunidade está sujeita a determinadas obrigações para com o poder régio. Os seus membros respondem ao apelido (sem o rei, apenas numa área que corresponderia vagamente às dimensões do município, isto é, até onde num mesmo dia se pudesse fazer a viagem de ida e volta). Participam na montaria, com o rei, uma vez por ano, e não podem recusar-se a levar as cartas e os presos de um a outro castelo.
     Contribuem com os seus impostos para as despesas do palácio. O principal imposto – aquele que significa a dependência em relação ao rei – é a parada e o seu valor está fixado em géneros (2 pães, 1 almude de vinho e 1 almude de cevada).
     A actividade venatória é taxada com o pagamento de uma peça do animal caçado, no caso do cervo ou do urso (um lombo ou as mãos, respectivamente), mas isenta em relação ao javali ou porco bravo, enquanto das pesqueiras se pagava uma taxa que oscilava entre metade do peixe recolhido (na pesqueira nova) e um quarto (nas antigas).
     Apenas o imposto que recaía sobre as viúvas que contraíam segundas núpcias ou os maridos que deixavam a esposa, retomando os bens que anteriormente haviam partido com ela – as osas – era fixado em dinheiro, sinal bem claro do seu carácter recente.
     A lutuosa e o maninhádego, impostos sobre os bens deixados pelos que morriam, o segundo podendo absorver toda a sua herança, apenas se executavam no caso dos clérigos que falecessem ou caíssem irremediavelmente cativos, sem deixar quaisquer parentes, e, mesmo assim, a terça parte era destinada a sufrágios (não se prevê, por conseguinte, a hipótese de deixar os bens em testamento).

     1.5. A administração da justiça.

     O funcionamento da justiça está garantido por um conjunto de normas sobre procedimentos judiciais e a fixação de uma lista graduada de “coimas” a pagar pelos vários delitos.
     No foral estão previstas as seguintes figuras judiciais:
– o “iudicium” (julgamento): não tem lugar no caso de mutilações corporais (naturalmente porque estava reservado aos delitos mais graves, isto é, ao homicídio e ao rouso);
– a “inquisitio” ou “exquiritio directa”, isto é, a audição de testemunhas, é prevista nos delitos de furto (de gado), de mutilações e de calúnias graves;
– a lide ou luta, na ocorrência de mutilações, de cuja autoria não haja testemunhas, desde que ambos os contendores aceitem essa fórmula;
– a prova testemunhal abonatória, simultaneamente com o juramento do acusado e com a apresentação de um fiador, no caso de homicídio, e possivelmente também no de rouso, quando não há testemunhas do facto, mas apenas suspeitas;
– a penhora, aqui referida somente a propósito da distribuição das respectivas receitas;
– o cúmulo de penas, uma vez que, se um homem na mesma hora cometer vários delitos, apenas pagará a coima correspondente a um deles;
– a composição: se alguém cometer um delito contra outro morador, e entre eles se fizer a reparação do mal, não terá lugar o pagamento de coimas ao “palácio”.

     A gravidade dos principais delitos encontra-se escalonada, não só através da definição dos procedimentos a adoptar, como acabamos de ver, mas também na graduação das coimas ou penalidades aplicáveis, que é a seguinte:

DELITOS E COIMAS

COIMA          DELITO

50    soldos    homicídio
50    »             rouso
30    »             sequestro de pessoas
30    »             agressão e lançamento por terra
30    »             esterco à boca (lançamento de –)
30    »             ultrajes verbais graves
25    »             mutilações (pé, mão, olho)
10    »             atirar à água
10    »             erimento com espada ou lança, a sair do outro lado
  5    »             ferimento com espada ou lança, simples
  5    »             pedrada ou paulada que faz sangue
  5    »             bofetadas, puxar os cabelos
  5    »             entrar em casa alheia (além disso, duplica o que tirar)
  1    »             punhada e pedrada ou paulada sem sangue
  *                   furto

* O furto é penalizado com a obrigação de restituir em dobro e pagar o séptulo ao palácio. A não restituição de empréstimos, porém, se implicar a intervenção do saião, é penalizada com uma coima igual a metade do valor emprestado.

     Ao contrário do que sucede com outros forais posteriores, o foral de Pesqueira e Anciães e municípios vizinhos não fornece dados claros sobre as pessoas ou instituições que intervêm na administração da justiça. Ao saião – o único protagonista da justiça a que o documento se refere expressamente – competem algumas funções policiais e judiciais, designadamente a execução de penhoras e a aceitação de fianças. O julgamento dos crimes graves – homicídio e rouso – está reservado, em princípio, à justiça régia, mas escapa-nos o seu mecanismo. O “concelho” interviria, por certo, na resolução dos problemas de justiça resultantes de outros delitos, designadamente daqueles que implicavam audições de testemunhas, juramentos e diligências com vista à composição entre as partes. Não esqueçamos, para terminar, a já citada disposição do concílio de Coiança: “in Legione, et in suis terminis, et in Gallaecia, et in Asturiis, et in Portugalle, tale sit iudicium semper, quale est constitutum in decretis Adelphonsi Regis pro homicidio, pro rauso, pro sagione, aut pro omnibus calumniis suis”.

     2. Coimbra, 1085

     Em 25 de Maio de 1085, Afonso VI de Leão e Castela entrava em Toledo, após a capitulação desta cidade, restabelecendo nela a capital dos antigos reis visigodos. Iniciava-se um novo período no avanço das conquistas peninsulares, dentro do qual podemos assinalar uma primeira fase, entre os anos de 1085 e 1109, em que se procura garantir o domínio da superfície central, aquém do Tejo. Dessa época são o impropriamente dito foral de Coimbra, de 1085 (confirmado em 1093) e o primeiro foral de Santarém (1095.11.13).
     O foral de Coimbra, de 1085, enquadra-se no programa de reorganização do reino, iniciada nos tempos anteriores ao agitado período que levará à batalha de Zalaca, e não oferece novidades, pois se limita a confirmar genericamente a posse dos bens que os moradores tinham adquirido, sob o governo do conde Sisnando, no tempo de Fernando Magno, estabelecendo a proibição de os alienar a favor de alguém que não seja vizinho. A caminho do Sul, na campanha de 1093, Afonso VI, acompanhado do seu genro Raimundo, reconfirma esta carta.

     3. Santarém, 1095

     Dois anos depois de instaurado o domínio cristão em Santarém, Lisboa e Sintra (Verão de 1093), situa-se a outorga do foral à primeira destas povoações, ocorrida em 1095, quando Afonso VI, a partir de Toledo, centrava de novo a sua actividade na administração do estado.
     Ocorrida nesse mesmo ano, a derrota do conde D. Raimundo, levando-o a perder Lisboa, não só terá determinado o desmembramento do território que lhe tinha sido confiado pelo sogro, e a subsequente entrega ao conde D. Henrique do governo da parte meridional, como também o facto de então D. Afonso VI ter concedido foral apenas a Santarém, de entre as localidades que em 1093 conquistara aos mouros.

     O foral de Santarém, tal como o de Coimbra, foi concedido a uma cidade de longa tradição urbana, cuja reconquista era, no entanto, bem mais recente. Por isso mesmo é que o outorgante, ao contrário do que sucedera com a cidade do Mondego, achou útil ou mesmo necessário consignar algumas normas, pelas quais se deviam reger os habitantes da cidade. Essas normas foram extraídas da anterior legislação e praxe do reino, e, por isso mesmo, o foral de Santarém apresenta múltiplos pontos de contacto com os anteriores forais de Leão, e, particularmente, com os já referidos, de S. João da Pesqueira e arredores.
     A localização peculiar de Santarém, implantada nas margens do Tejo, na fronteira dos reinos sarracenos, ganhou maiores regalias para os seus moradores, na vanguarda da reconquista, “pro bono servitio quod mihi fecistis et adhuc facietis”, que se traduzem na quase total autonomia da cidade, livre de impostos, e com as “coimas” reduzidas ao mínimo, daí que nem alusão se faça quer ao saião, quer ao mordomo.

     3.1. A sociedade.

     É a cidade povoada de várias gentes: cristãos, destinatários directos do foral, judeus e mouros. A maioria dos habitantes vive na cidade, mas o diploma recomenda que, além de bem cultivadas, as herdades estejam convenientemente guarnecidas de militares, obviamente para repelir qualquer incursão dos inimigos (literalmente “para que prestem serviço ao senhor de Santarém”, o que se entende no âmbito da defesa), e atribui aos possuidores de “vilas”, através do alfoz, o direito de perceber as coimas dos que nelas morarem. O direito de propriedade privada não sofre praticamente qualquer restrição: os moradores podem comprar e vender herdades, deixá-las aos herdeiros, ou, se filhos não tiverem, dá-las ou deixá-las em testamento aos particulares ou aos mosteiros.

     3.2. A administração da cidade.

     A autoridade suprema – rei ou senhor – intervirá raramente: o encaminhamento para as régias instâncias prevê-se apenas na contingência do homicídio de um mouro, e naturalmente só com a intenção de precaver o exacerbamento de conflitos locais.
     As principais funções do governo da cidade competem aos “maiores” ou “melhores”, embora não se aplique algum nome ao órgão colegial em que eles se congregam, e muito menos consigamos imaginar o seu número. Uma cláusula do foral prevê a intervenção de “omnis civitas”, toda a cidade, no julgamento de um facto de homicídio (de judeu).

     3.3. A justiça.

     Embora o texto seja obscuro, reserva-se ao braço real a sentença, em caso de homicídio de mouro, ou da respectiva ocultação, depois de feita a “exquisitio”, isto é, a comprovação dos factos, mediante a audição de testemunhas, pelos “maiores” da cidade.           Nos restantes delitos, os réus são conduzidos perante os “maiores civitatis” que, “per exquisitam veritatem secundum certitudinem”, isto é, depois de apurar a verdade certa, mediante a audição das testemunhas, lhes aplicam a respectiva pena.
     Num só caso é prevista a lide ou luta judicial: quando houver uma acusa de homicídio de mouro, sem que haja testemunhas suficientes para culpar o acusado.
     O foral não faz o elenco das “coimas” a pagar pelos vários delitos, limitando-se a estipular que, salvo algumas excepções, os santarenenses pagarão apenas a quinta parte. As excepções são: o homicídio de judeu, onde terá lugar o pagamento integral da coima, ou o de mouro, em que se reserva ao rei a fixação e aplicação da pena; e o furto, que segue a lei geral (o dobro ao lesado e o séptulo ao rei).