Introdução

     1. Actualidade dos estudos sobre a história dos municípios

     O estudo do municipalismo iniciou-se em Portugal na primeira metade do século passado, sob o estímulo dos mais importantes acontecimentos nacionais que então se deram: a revolução liberal e as reformas administrativas que se lhe seguiram.
     Se, nas últimas décadas do século XVIII, se sentia ao vivo a necessidade de reformar as instituições municipais, a revolução, privilegiando o modelo centralizador da França napoleónica, através da reforma implementada pela Lei de 31 de Outubro de 1832, relegou para um plano inferior os municípios. Tal situação criou um vácuo institucional, que os mais conscientes protagonistas da vida pública sentiram a necessidade de preencher. Daí que, à procura de respostas, se interrogasse, mais uma vez, a História.
     Nesse ambiente se realizaram os estudos de Alexandre Herculano, procurando aprofundar o conhecimento do papel que outrora coubera ao municipalismo na organização e na vida cívica do povo português. Almeida Garrett, ao apresentar, em 1854, na Câmara dos Pares, um Projecto de Reforma Administrativa, num discurso que reflecte já os resultados das investigações de Alexandre Herculano, depois de referir que “a administração em Portugal, como desde a remota origem deste povo se afeiçoou com as leis e hábitos romanos, com os hábitos e instituições da idade média, assenta num princípio que ninguém por longos séculos se lembrará jamais de revocar em dúvida, nem de discutir sequer embora se sofismasse muitas vezes e é que o povo é quem a si mesmo se administra por magistrados eleitos e delegados seus”, e de tecer várias considerações sobre o abastardamento deste princípio, no decorrer dos séculos, concluía: “Nem tão pouco eu venho faltar ao respeito à lei do estado, que débil trabalhador ajudei a plantar, fraco soldado gastei a vida a defender, a esta câmara, a mim mesmo, e à memória honrada e gloriosa dos que nos ressuscitaram entre nós a liberdade, propondo-vos que voltemos às instituições municipais da idade média que o feudalismo inquinou em muita parte, e em que o despotismo infiltrou depois a sua corrupção”.
     O estudo do municipalismo continua actual, tanto mais que, entre as maiores reformas da nossa organização administrativa, se conta uma descentralização ainda não levada até às últimas consequências, e na qual uma das principais linhas de força está na valorização do papel das autarquias. O conhecimento das experiências vividas pelos nossos antepassados abre, mais uma vez, o caminho a uma intervenção mais esclarecida na construção do mundo presente e do futuro.

     2. De Alexandre Herculano a Torquato Soares

     Muitos foram os que, no decurso destes dois séculos, se debruçaram sobre a temática do nosso municipalismo. O primeiro passo importante, nessa direcção, deu-o Francisco Nunes Franklim, ao publicar a Memória para servir de Índice dos Forais do Reino de Portugal e seus Domínios. O pioneiro da investigação sobre os forais foi João Pedro Ribeiro, preocupado mais com os aspectos diplomáticos e privilegiando a reforma manuelina.

     2.1. Alexandre Herculano

     Os estudos de Alexandre Herculano foram precedidos da transcrição dos forais, poucos anos depois publicada nos Portugaliae Monumenta Historica – Leges et Consuetudines. Inspirado na obra de Savigny, o grande historiador realizou no vol. IV da História de Portugal um empolgante estudo dos municípios portugueses, nos séculos XII e XIII, classificando-os em várias categorias, conforme se aproximavam mais ou menos da estrutura dos municípios romanos, que, no seu modo de ver, eram os antepassados dos nossos, sobrevivendo às convulsões resultantes das invasões bárbaras e à ocupação muçulmana.
     A organização do município de direito romano assentava na existência de duas espécies de munícipes, os decuriões, cidadãos de pleno direito, e os plebeus ou privados. As principais magistraturas nas cidades romanas eram os duúnviros ou quatórviros (conforme o número), eleitos por um ano, pela cúria, formada pelos decuriões, e competia-lhes o exercício do poder judicial. Acima deles estavam os curadores ou quinqenais, dois ou quatro, eleitos por cinco anos, competindo-lhes as funções administrativas. Aos edis cabia o encargo de velar pela conservação da paz interna do município, a inspecção e abastecimento dos mercados e a estiva dos géneros. Finalmente, o questor arrecadava as contribuições e administrava os fundos existentes, sob a tutela dos curadores. Em algumas cidades da Itália, em vez dos duúnviros, a máxima autoridade era exercida por um prefeito nomeado anualmente por Roma; em muitas cidades fora da Itália, a maior parte dos poderes estava concentrada nas mãos de um magistrado, o rector – também designado como corregedor, presidente ou consular (corrector, praeses, consularis) – por vezes chamado juiz ordinário (judex ordinarius).
     Embora com outras designações, esta magistraturas encontram-se total ou parcialmente nos municípios portugueses, segundo Alexandre Herculano, que, em consequência, afirma: “Os concelhos portugueses, ou anteriores à monarquia, ou fundados durante o século XII e XIII, podem dividir-se em três classes: rudimentais, imperfeitos e completos”.
     Os concelhos completos caracterizam-se pela “existência da magistratura jurisdicional exercida pelos duúnviros ou quatuórviros e distinção dos chefes de família nas duas classes de decuriões e privados”. Herculano faz corresponder a estes, respectivamente, os cavaleiros vilãos e os peões, e às magistraturas dos duúnviros ou quatuórviros considera equivalentes os alcaldes, alvazis ou simplesmente juízes, em geral dois, mas não faltando exemplos de serem quatro ou mais. Divide, em seguida, “por quatro fórmulas todos os forais das municipalidades perfeitas. A primeira será a dos que têm por modelo o foral de Santarém ou de Lisboa, a segunda a daqueles cujo tipo é o foral de Salamanca, a terceira a dos que reproduzem o de Ávila, reservando para a quarta os que não têm tipo conhecido, variando indefinidamente entre si, e os que, tomando, na verdade, por modelo a organização municipal de um concelho mais antigo, quer de Leão quer de Portugal, são em mui pequeno número para constituírem uma categoria à parte”.
     Segundo Herculano, “uma das circunstâncias materiais que ao primeiro aspecto distinguem os concelhos do “tipo que se pode considerar nacional” de Santarém dos das outras fórmulas é a denominação de alvazis dada aos juízes municipais, denominação constante nos forais que pertencem a esta categoria”, o que, de facto, não corresponde à verdade, uma vez que não é já nos forais que aparece a designação, mas em diplomas posteriores, como veremos. O mais elevado funcionário nos municípios desta fórmula, segundo observa o insigne historiador, é o alcaide, (no latim da baixa Idade Média designado também como pretor), que exerce as suas funções em delegação do rei, acumulando as atribuições militares com a intervenção nos actos jurisdicionais; como nem sempre residiria localmente – o que por vezes resultava do facto de estar à frente de uma circunscrição mais vasta, o distrito – e não se ocuparia das minúcias da actividade quotidiana, teria um substituto, o vice-pretor ou alcaide-menor, que (cita o caso de Santarém) seria escolhido entre os vizinhos. A cláusula do foral a que Herculano recorre para provar a existência do vice-pretor ou alcaide-menor, no foral de 1179, é mal compreendida, pois que efectivamente trata da nomeação do alcaide pelo “tenens” ou rico-homem com autoridade sobre a região em que se incluía o município. Nesta categoria Alexandre Herculano classifica Coimbra (1179), Lisboa, Santarém, Alenquer, Leiria, Torres Vedras, Vila Viçosa, Beja, Monsaraz e Montemor-o-Velho.
     Os concelhos perfeitos da segunda fórmula são os que seguem como tipo o foral de Salamanca, “os concelhos completos mais antigos”, “os mais importantes em número” (de facto, estão em primeiro lugar os que seguem o modelo de Évora), “os melhor dotados de prerrogativas e liberdades”, mas, no entanto, para o referido historiador, “este mesmo facto e vários outros nos estão indicando que a Beira encerrava uma população mais rude, mais impaciente do jugo e, porventura, mais belicosa”, o que em certo modo constitui uma contradição, para quem põe a maior ou menor perfeição dos municípios nas sua aproximação dos civilizados modelos romanos e consequente distanciamento da barbaridade. Ao lado dos magistrados jurisdicionais próprios, os alcaldes, aparece aí regularmente um judex, delegado do poder central, e revestido exclusivamente de autoridade civil e não militar. A autoridade militar compete ao “sénior” ou “personagem chefe de guerra que capitaneia nos fossados os cavaleiros vilãos, e que se denomina o "senhor da vila"“, e que, depois do foral de Numão, em que o senhor é o outorgante, Fernando Mendes, potestas de Bragança e Lampaças, em muito outros se estabelecerá que não seja outrem além do rei, seu filho, ou então alguém a quem o concelho aceitar. Mais à frente, porém, Alexandre Herculano reconhece que este senhor (sénior) não é mais que o rico-homem a quem competia a tenência da região. No conjunto dos que adoptam esta fórmula engloba Numão, Freixo da Serra, Marialva, Celorico, Castreição, Trancoso, Penedono, Urros, Valhelhas, Penamacor, Guarda, Alpedrinha, Proença, Santa Cruz, Salvaterra do Extremo, Castelo Mendo, Idanha-a-Velha, Valença, Viana, Melgaço, Monção, Pena da Rainha e Prado.
     Na terceira fórmula dos concelhos perfeitos ou completos, o insigne historiador coloca os que se apresentam como seguidores do foral de Ávila, isto é, o de Évora e seus derivados. Aproximam-se do tipo de Salamanca, “acaso porque o foral de Ávila era assaz semelhante a ele: encontra-se neles “o judex do tipo de Salamanca e o privilégio de não haver aí senhor especial, ou por outra, de não ser a terra dada em préstamo”. O “pretor”, observa Herculano ( e a expressão é dele, pois no foral apenas se fala no juiz), “é, como no tipo de Santarém, uma entidade ao mesmo tempo municipal e real” e, segundo outros documentos, “ainda nos começos do século XIII os magistrados duunvirais se chamavam aí alcaldes”; “o alcaide [aqui Herculano já lhe não chama pretor] intervém nas deliberações municipais, em actos judiciais e nas questões administrativas”. Observa ainda que “a existência simultânea do alcaide-mor e do menor falta geralmente nos documentos relativos aos municípios modelados pelo de Évora ou de Ávila”. Como verificamos, nesta breve síntese, Herculano luta com muitas dificuldades, patentes nos próprios termos, para defender a aplicação da sua teoria. É que, de facto, a documentação da época, constituída sobretudo pelos forais, não lhe fornece os elementos de que necessita para defender a sua tese, e por isso, ele mesmo confessa, teve de recorrer ao contributo da documentação mais tardia, “sobretudo da legislação interna dos concelhos do Alentejo central, no decurso do século XIII e nos princípios do XIV”. Ora nesses diplomas abundam já as contaminações provenientes quer do contacto com outros municípios, especialmente dos que adoptaram o foral de 1179, quer da legislação central, e da evolução das estruturas jurídicas, com a difusão dos estudos do direito romano. Nesta terceira fórmula dos concelhos perfeitos, Alexandre Herculano coloca os de Évora, Elvas, Terena, Montemor-o-Novo, Alcácer, Portel, Covilhã, Sortelha, Castelo Branco, Avis e Marvão.
     A última classe dos concelhos perfeitos “posto que abrangendo menor número deles, encerrava uma grande variedade de espécies; mas o chefe militar da povoação, o alcaide, encontra-se aí geralmente”, se bem que, às vezes, em municípios incipientes “usava tão-somente o título de "povoador" (pobrador), enquanto se não realizava a edificação da alcáçova”. Como é patente, Herculano, arruma neste grupo todos os municípios à frente dos quais, independente dos outros aspectos da organização local, no seu entender, se encontrava uma autoridade militar, que constituiria a mínima exigência para que um concelho fosse perfeito, e que não se englobavam em nenhum dos três conjuntos que seguiam os modelos de Salamanca, Ávila ou Santarém 1179. Como exemplos apresenta Ericeira, Panoias, Óbidos, Azambuja, Monforte de Rio Livre, Bragança e, a partir de certa altura, até o de Guimarães.
É para nós incompreensível como os municípios de um tipo assim descrito se podem considerar perfeitos ou completos, para usar a nomenclatura de Herculano, enquanto outros municípios, onde há um corpo de magistrados locais, são relegados para um dos grupos dos concelhos imperfeitos, se bem que, como a respeito da última ou sexta fórmula deles regista, “gozavam todavia das instituições capitais dos concelhos perfeitos”, só porque no foral se não faz referência à existência de cavaleiros vilãos e todos os habitantes são tributários ou jugadeiros.
     É, aliás, o facto de os seus moradores serem exclusivamente peões ou tributários, e os serviços pessoais a que estavam obrigados nunca serem os do fossado com armas e cavalo, que constitui para Herculano, a característica dos concelhos não perfeitos. Mesmo aqui, porém, ele admite uma excepção, e dessa excepção faz a quinta fórmula dos concelhos imperfeitos: há uma série grande de municípios onde existem cavaleiros vilãos, mas o que os caracteriza como imperfeitos “é o incompleto das magistraturas e, de ordinário, o menor número de garantias e privilégios que se lhes concedem”. Na prática, para Herculano, o que os impede de entrar na categoria dos concelhos completos é o não terem pelo menos dois juízes, mas apenas um. Nessa categoria coloca Azurara, Coimbra, Soure, Tomar, Pombal, Miranda, Viseu, Seia, Pedrógão, Sernancelhe, Longroiva, Sebadelhe, Muxagata e Vilarinho da Castanheira.
     Na quarta fórmula, e continuamos por ordem decrescente, pois isso equivale ao grau de afastamento do ideal herculáneo do município perfeito, incluem-se os burgos, onde a base da tributação directa é o prédio urbano e não a courela ou propriedade rural; entre os burgos que cita – Constantim, Guimarães, Mesão Frio e Porto – só no último encontra referência a um magistrado judicial, de nível inferior, o meirinho, nomeado e exonerado pelo bispo local.
Nos concelhos imperfeitos da terceira fórmula, Herculano depara com a existência de um juiz local, ou homens-bons a exercer certa jurisdição, e de um exactor fiscal exclusivo. “Esta fórmula é o verdadeiro tipo dos concelhos imperfeitos”, diz o historiador. Seria o caso de Celeirós, Zêzere, Marmelar, Covelinhas, Taboadelo-Fontes-e-Crastelo, Guardão, Barqueiros, Mós, Ega, e Coja.
     Se nos concelhos imperfeitos da segunda fórmula, “a jurisdição é em parte exercida pelos homens-bons (boni homines), isto é, pelos indivíduos da povoação mais ricos e mais notáveis por qualquer título, mas não revestidos de um carácter de magistrados permanentes”, como em Bálneo (Banho) e Covas, exemplos citados por Herculano, já nos da primeira fórmula encontramos, como na terceira, um juiz local, eleito ou de nomeação, mas, ao contrário, não há um oficial do fisco, próprio e exclusivo do lugar, caso de Redinha, Abiul e S. Julião do Tojal.

     2.2. Teófilo Braga

     A doutrina da origem romana do municipalismo português foi geralmente seguida após a publicação da História de Portugal de Alexandre Herculano, contando-se entre os seus adeptos Henrique da Gama Barros, na brilhante História da Administração Pública em Portugal.  Já, porém, em 1868, Teófilo Braga, possivelmente sob a influência de Muñoz y Romero, se levantava contra a teoria de Herculano, defendendo a origem germânica dos municípios portugueses.
     Para Teófilo Braga, os forais portugueses são “derivados exclusivamente do génio germânico, em reacção constante contra o código visigótico e contra o direito romano”. Nos forais portugueses, segundo ele, encontram-se os cinco caracteres fundamentais do direito germânico: os boni-homines equivalem aos cojuradores, cujo depoimento servia de plena prova para os juízes; o judicium Dei aparece nos forais sob as formas do combate judiciário e da ordálio; o wehr-geld ou compensação em dinheiro (embora se encontre, admite, também no direito visigótico); as cerimónias jurídicas e fórmulas augurais, abundantes nos diplomas portugueses. Para Teófilo Braga, “a irmandade heróica, realizada depois em toda a ordem social, nas jurandas e mestrias, nas comunas, no espírito de concórdia e de igualdade, é também privativa do génio germânico. Trouxeram estes sentimentos os bárbaros, convertendo a sociedade civil numa sociedade humana”.
     A tradição germânica manteve-se entre os povos submetidos durante a ocupação muçulmana, e foi mesmo durante esse tempo que se deu a fermentação que levou ao nascimento dos nossos municípios: “à raça mozárabe se deve a transformação social dos povos da Península, operada pela fusão do civilismo romano com a independência germânica”. Os forais portugueses, diz ainda, “podem considerar-se como verdadeiras cartas de comunas, os conjuradores são agentes que reclamam as imunidades locais, servindo de prova completa de facto”.
     Estribado nestas considerações, Teófilo diz que “a classificação do sr. Herculano peca por atribuir demasiadamente aos forais um carácter enfitêutico”, porque “os nossos forais, como derivados de costumes germânicos, não podiam antes de D. João I apresentar a natureza de um contrato positivo do direito romano”, e, em consequência, apresenta a sua classificação:

I – Cartas de povoação ou forais per bona pace et per bona voluntate, como o de Guimarães, dado por D. Afonso Henriques, e o de S. João da Pesqueira;
II – Confirmação de costumes locais em lei própria e independente, cartas de bono foro et de bona consuetudine, como o de Viseu, onde o outorgante diz: “Placuit mihi ut facerem illis firmitati scripturam de bono foro et de consuetudine etc.”; entre estes, incluem-se os seguintes:
1) forais obtidos por uma revolta comunal ou por compra, como o de Cevadi (sic);
2) forais concedidos pela magnificência real, como o de Santarém;
3) forais dados por rivalidade ou por uma luta de competências a nível de jurisdição senhorial, como os de Sernancelhe e Numão, em tempos em que os romanistas não tinham ainda definido a esfera dos direitos reais e os senhores se arrogavam a faculdade de cunhar moeda e ter jurisdição própria;
III – Forais em que se concedem privilégios a uma certa classe, como o foral dos mouros forros de Lisboa, Almada e Palmela;
IV – Forais adquiridos por uma ficção da extensão das honras, como os denominados de amadigo;
V – Forais estabelecidos por contrato enfitêutico, susceptíveis de remissão, como todos os posteriores à reforma mandada fazer por D. Manuel.

     Teófilo Braga baseia algumas destas categorias no simples teor do protocolo inicial ou do escatocolo de alguns forais, e, embora algumas das suas observações sejam pertinentes, sobretudo pela oposição aos excessos do romanismo, a verdade é que o seu estudo não se mostra baseado numa análise profunda dos forais ou de outros documentos, e a classificação dele resultante não reflecte o conteúdo dos diplomas e muito menos a organização interna dos municípios.

     2.3. Eduardo de Hinojosa

     Uma análise mais serena e aprofundada das influências germânicas no direito local peninsular foi levada a cabo por Eduardo de Hinojosa, que confirmou a presença dos cojuradores em muitos do nossos documentos, assim como muitas práticas relacionadas com a família (a germanitas entre os esposos, os conselhos de família, as arras matrimoniais, as disposições sobre a herança), a graduação de penas conforme a gravidade do delito e a qualidade do ofendido, mas sobretudo o hábito da vingança do sangue ou vingança privada, a inimizade ou perda da paz e a penhora extrajudicial ou privada. Esta influência, porém, não determinou – pelo menos creio que nunca Hinojosa o afirmou – a existência do direito municipal e de forais típicos dessa influência resultantes, embora as tradições germânicas ou a luta contra elas determinasse a inclusão de algumas cláusulas em certos forais.

     2.4. Torquato Soares

     Torquato Sousa Soares, em 1931, tentou rever a teoria de Alexandre Herculano, despojando-a do seu acendrado romanismo. Para Torquato Soares, nessa época, existiam três grupo de concelhos: rurais, urbanos e distritais.
     No primeiro grupoconcelhos rurais – encontravam-se três categorias de municípios, que corresponderiam, em geral, à sobrevivência de comunidades instaladas nos antigos castros:
1 – aqueles “em que o juiz aparece como único magistrado local”;
2 – aqueles onde, “ao lado do juiz de eleição popular, existe um mordomo também eleito pelos vizinhos”;
3 – aqueles onde “a população, agrupada em torno dum castelo, duma catedral ou dum mosteiro, constitui os chamados burgos”.

     Os concelhos urbanos eram simultaneamente cabeça de distrito, se bem que “a organização distrital nada tinha de comum com a organização do município”. Torquato Soares divide esta classe de concelhos em cinco subgrupos, deixando ainda de fora o primeiro foral de Leiria, os de Sintra e Penacova, e os de Mortágua, Ega, Redinha e Abiul (estes últimos considerados como concelhos rurais que têm a organização dos concelhos urbanos):

1) concelhos da Beira Alta (leste do distrito de Viseu): Sátão, Tavares, Ferreira de Aves, Sernancelhe – há aí jugários e cavaleiros vilãos, existe um juiz e um saião, mas não um mordomo próprio;
2) concelhos que seguem o foral de Coimbra de 1111, onde há um juiz e um saião como o anterior, mas os peões podem ascender a cavaleiros vilãos, e estes nunca perdem essa categoria; os infanções não poderão aí viver, se não quiserem servir como os outros moradores;
3) concelhos que adoptam o foral de Miranda do Corvo, assemelham-se aos do primeiro grupo, mas aparece aí o vicarius ville, que devia corresponder ao mordomo;
4) concelhos de Viseu e Seia, onde, a nível de magistraturas, existia, um juiz, “auxiliado nos julgamentos por um corpo de homens-bons”, e dispondo de um saião ou oficial da justiça, e cuja sociedade, além dos cavaleiros vilãos e dos peões, inclui os mercadores;
5) concelhos que seguem o segundo foral de Tomar, em que existe um juiz e um alcaide, também com funções jurisdicionais, um saião, um mordomo e um almotacé; a sociedade está igualmente dividida em jugários e cavaleiros vilãos.
Para este conjunto de concelhos, Torquato Soares defende a ascendência do município romano.

     Em terceiro lugar vêm a classe dos concelhos distritais, que divide em quatro grupos, segundo o modelo adoptado é o foral de Salamanca, o de Ávila, o de Coimbra-Santarém-Lisboa, de 1179, ou o de Zamora:

1) Salamanca – onde, ao lado do juiz, ou a substituí-lo, aparecem os alcaldes;
2) Ávila, seguido por Évora – onde, embora não o diga o foral, por outros documentos se sabe que “além dum alcaide ou pretor, havia dois juízes seguramente de eleição popular”;
3) Coimbra, 1179 – onde “o juiz de eleição popular é substituído por dois alvazis, permanecendo apenas o alcaide, com o mesmo carácter misto de delegado do rei e de funcionário municipal”;
4) Zamora, adoptado a partir da segunda metade do século XIII, em várias localidades de Trás-os-Montes: “em todos estes concelhos existem dois juízes de eleição popular e ainda um pretor, intervindo ou não na vida municipal, mas sempre estranho aos vizinhos do concelho.

     Nas três primeiras categorias (Salamanca, Évora, Coimbra), os cavaleiros vilãos obtêm os mesmos privilégios de carácter judicial concedidos aos infanções. Na última categoria (Zamora), segundo Torquato Soares, “não deve existir uma verdadeira cavalaria, pelo menos com a organização com que aparece nos outros concelhos distritais”.

     No artigo publicado na História da Expansão Portuguesa no Mundo, Torquato Soares faz uma revisão desta classificação dos forais, que posteriormente mantém no artigo escrito sobre os concelhos para o Dicionário de História de Portugal.
     Na nova nomenclatura, distingue apenas dois grandes grupos, os concelhos rurais e os concelhos urbanos.
     No grupo dos concelhos rurais incluiu um sem número de localidades, todas situadas a norte do Douro, embora também admita a existência de concelhos deste tipo nas Beiras (mas daí não cita exemplos). A base destes concelhos é um contrato enfitêutico, abrangendo um pequeno número de povoadores, aos quais é colectivamente aforada uma parcela de território, e a sua autonomia apenas se vislumbra nas cartas de povoação através da referência a um magistrado dotado de poderes jurisdicionais (juiz local) e/ou a um simples exactor fiscal (mordomo); correspondem, segundo o mesmo autor, às três primeiras categorias de concelhos rudimentais ou imperfeitos de Herculano.
     No grupo dos concelhos urbanos, Torquato Soares inclui agora seis categorias: os burgos, e os que receberam forais segundo os tipos de Coimbra-1111, Coimbra-Santarém-Lisboa-1179, Salamanca-Guarda, Ávila-Évora e Zamora, cujas diferenças por vezes precisa de modo diferente:
1 – burgos: povoações, constituídas junto de uma fortaleza, onde vivem funcionários e simples serviçais e soldados directamente dependentes do poder central, onde um juiz, ao que parece de eleição popular, é o supremo magistrado; a carta de foral concede aos seus moradores, os burgueses, igualdade de direitos e deveres, assim como a inviolabilidade do domicílio perante o saião ou o meirinho, obrigando-os ao pagamento apenas de um censo anual, como sinal de submissão ao vínculo dominial, à prestação de serviços, ao pagamento de direitos senhoriais (portagens) e de multas judiciais (coimas);
2 – Coimbra – 1111: os municípios que recebem um foral derivado deste, situados nas Beiras, na altura da outorga, quase todos são territórios fronteiriços, ainda sob a ameaça dos muçulmanos, e correspondem ao próprios distritos (áreas administrativas territoriais); se a carta de foro lhes concede, por vezes, o privilégio de couto, nem por isso ficam isentos de toda a intervenção do poder central ou senhorial, ao qual continua a pertencer a nomeação do juiz e do alcaide, que, em todo o caso, deverão ser naturais do concelho; a estes magistrados locais somavam-se o saião e o mordomo, e, por vezes, também um ou mais almotacés, certamente eleitos; a comunidade local, a que competia a ordenação da vida económica – e a própria aplicação de multas só podia ser feita pelo juiz em conjunto com quatro ou cinco vizinhos – incluía os infanções que estivessem dispostos a servi-la como os cavaleiros-vilãos; a estes, isentos do pagamento da jugada, parecia competir o exercício das mais altas magistraturas municipais;
3 – Coimbra/Santarém/Lisboa – 1179, adoptado por várias povoações estremenhas, alentejanas e algarvias: caracteriza-se este grupo porque, a nível de magistraturas, apesar de as cartas de foral nada dizerem a esse respeito, em vez do juiz, há dois ou mais alvazis, eleitos anualmente pelo concelho, e os peões são equiparados aos cavaleiros vilãos; o principal objectivo da outorga deste tipo de carta parece ter sido o de favorecer a cavalaria vilã, cuja importância a investida dos almóadas punha novamente em destaque;
4 – Salamanca-Guarda: os municípios deste grupo, situados, na sua maioria, no actual distrito da Guarda, apresentam uma organização muito evoluída, adequada a grandes territórios, onde existe um núcleo urbano principal e outros pequenos núcleos dotados de uma certa autonomia; em consequência, além de um juiz que preside, com o carácter mais ou menos acentuado de representante do poder central, e de vários “alcaldes urbanos, que às vezes formavam vários grupos – um de cada bairro, companhia ou colacção – , aparecem em alguns concelhos deste tipo os alcaldes ou jurados das aldeias ou paróquias rurais do termo municipal”; enquanto a intervenção do rei ia por vezes até ao ponto de nomear um dos alcaldes de cada bairro ou paróquia, a força representativa da comunidade estava nos concilia ou junctas, “mas, pelo menos em alguns, só os cavaleiros, que tinham foro de infanções, eram elegíveis”.
5 – Ávila-Évora: os concelhos deste grupo, situados em grande parte do Alentejo e do actual distrito de Castelo Branco, correspondem, como os anteriores, a grandes circunscrições, mas é mais evidente o seu carácter militar, e neles preside, “como delegado do poder central, não um juiz, mas um pretor ou alcaide, que só excepcionalmente aparece na organização salamantina” e, localmente, “a mais alta magistratura municipal é constituída por dois únicos juízes”, destacando-se também “os almotacés, que exerciam funções de grande importância na vida económica urbana”; na maioria dos casos, trata-se “de organizar municipalmente uma população desenraizada que se procura atrair a regiões despovoadas” (note-se a pelo menos aparente contradição com a observação que se faz a propósito dos almotacés);
6 – Zamora: os forais da área transmontana, seguindo a organização de Zamora, “preceituam a eleição anual de dois juízes naturais de Portugal, ao lado dos quais o alcaide ou pretor, que devia ser cavaleiro fidalgo, mas apresentado pelos vizinhos do concelho, desempenha, juntamente com eles, funções de carácter judicial”; o regime tributário modifica-se “pela imposição do pagamento de uma quantia fixa em dinheiro”.

*
     Como referimos, a doutrina de Torquato Soares baseia-se fundamentalmente nos estudos de Herculano, expurgados, ainda que não totalmente, dos extremos do preconceito romanista. O próprio Torquato Soares, no artigo do Dicionário de História de Portugal, refere que o grupo de municípios por ele arrolados na categoria de rurais corresponde aos “que Herculano classificou de rudimentais e imperfeitos dos três primeiros grupos”. Completando esta observação, Humberto Baquero Moreno verifica que “os restantes seis grupos estudados por Herculano, os quais correspondem aos três últimos géneros de concelhos imperfeitos e aos três únicos tipos de concelhos completos deverão inserir-se na classificação apresentada pelo Prof. Torquato Soares sob a designação genérica de concelhos urbanos”.
     Sendo assim, alguns dos principais senões da síntese de Torquato Soares encontram-se já em Herculano, cujas teses Robert Durand considera demasiado juridicistas, dizendo preferir, em vez do critério baseado nas magistraturas, um critério baseado nas hierarquias sociais, distinguindo apenas dois grupos de concelhos imperfeitos – um em que todos os habitantes têm iguais direitos, outro em que há duas categorias de pessoas com diferentes deveres e direitos – mantendo, no fundo, a classificação de Herculano quanto aos concelhos perfeitos, e ordenando os subgrupos segundo o critério das cartas modelo.
     O equívoco de Herculano, e de Torquato Soares, que no fundo não deixa de ser o de Durand e de outros autores, consistiu em estudar os municípios como se eles logo desde o início se apresentassem como uma instituição acabada, sem necessidade de evoluir e se adaptar aos diversos tempos e lugares e imunes às influências exteriores resultantes do aperfeiçoamento dos métodos administrativos e do aprofundamento e difusão dos estudos jurídicos. Daí o terem sido estudados como uma realidade estática, numa perspectiva sincrónica, reunindo elementos fornecidos por diplomas elaborados em diversas épocas, por vezes com diferença de séculos, em contextos geográficos e humanos muito diferentes. É necessário estudar os forais e outros diplomas, não como se eles constituíssem um corpus simultâneo, mas numa perspectiva diacrónica, levando em consideração a inevitável evolução das instituições, tratando os municípios como realidades dinâmicas, susceptíveis de inovações e ajustamentos, ditados pela necessidade de sobrevivência, que, para defender o essencial, se amoldam, no que é secundário, às exigências dos tempos.
     Não é de facto seguro tirar conclusões sobre a estrutura e o funcionamento dos municípios portugueses no século XII, através do estudo de documentos um século ou mais posteriores, tratando-se para mais de áreas que, depois de reconquistadas sofreram um longo processo de crescimento e transformação, como sucedeu com a maioria das povoações que receberam o foral de Lisboa e com muitas daquelas a que foi outorgado o foral de Évora.

     2.5. Outras perspectivas

     Desde Cláudio Sanchez-Albornoz, o autor que, através de paciente e meticuloso estudo, demonstrou que o município romano entrara em decadência e se esgotara mesmo antes das invasões muçulmanas, a maioria dos autores está convencida de que os municípios resultam da convergência de factores diversos, cada uns com maior ou menor peso, segundo as circunstâncias. Daí que tenham sentido a necessidade de estudar o município sob perspectivas diversificadas, sem se cingirem aos aspectos político-jurídicos, mas dando também grande importância aos factores económicos, sociais e antropológicos e de geografia humana.
     O trabalho na área de investigação da história dos municípios desenvolvido nas últimas décadas tem-se revelado frutuoso, quer em Portugal, quer sobretudo em Espanha. O estudioso dispõe de obras de síntese tão valiosas como as de Galo Sanchez, de Alfonso Garcia Gallo, ou de Enrique Gacto Fernandez. O trabalho de Maria de Carmen Carlé, Del Concejo Medieval Castellano-Leones, constitui uma visão global sobre as instituições municipais do medievo peninsular, e se alguma limitação se lhe pode apontar é a de não levar sempre em conta, com a necessária clareza, as diferenças regionais e, em alguns casos, a de não estabelecer barreiras cronológicas, na linha das considerações que atrás fizemos a propósito de Torquato Soares e Alexandre Herculano.
     Ultimamente a historiografia espanhola tem recebido um extraordinário incremento, testemunhado não só pelo número de trabalhos publicados, mas também pelos novos caminhos desbravados pelos autores, e que vão desde o aprofundamento de questões semânticas e conceptuais, como é o caso de J. A. Sardina Páramo, em El Concepto de Fuero, e desde o estudo comparativo das “famílias” de foros, realizado por Ana Maria Barrero, à publicação crítica de um número considerável de fontes e à análise do fenómeno da municipalização, na perspectiva do povoamento e da organização do território: tal é o caso, entre vários outros autores e obras, de Gonzalo Martinez Diez, em Alava Medieval, de J. I. Ruiz de la Peña, em Las “Polas” Asturianas en la Edad Media, e de José M.ª Font Rius, em Cartas de Población y Franquicia de Cataluña.
     Em Portugal, revelaram-se de excepcional interesse os estudos sobre diversos aspectos jurídicos e institucionais realizados por de Paulo Merêa, incluindo uma interessante síntese na História de Portugal dirigida por Damião Peres, assim como muitos artigos monográficos publicados por vários autores no Dicionário de História de Portugal.
     Semelhante, no seu espírito, ao estudo global de Maria del Carmen Carlé, mais actualizada, porém, e contemplando de modo original outros aspectos, designadamente de âmbito económico e social, e, obviamente, voltada de modo específico para o caso português, é a segunda parte do primeiro volume de Identificação de um País, de José Mattoso, dedicada aos concelhos.
     Há indicadores de um interesse renovado pela história do municipalismo e a comprová-lo está uma série de trabalhos recentemente vindos a lume, relativos a diferentes épocas, entre os quais me parece justo destacar os de J. A. Duarte Nogueira, de José Marques e Maria Helena da Cruz Coelho. Vários estudos sobre esta matéria foram publicados por Humberto Baquero Moreno, que desde há alguns anos dirige na Faculdade de Letras da Universidade do Porto um seminário sobre esta matéria, no âmbito dos cursos de Mestrado em História da Idade Média.

     3. As fontes

     Para o período cronológico a que a nossa investigação se refere, embora haja outros, a maior parte, ou, melhor dito, a quase totalidade dos documentos, é constituída pelos forais. Os forais são os documentos através dos quais os municípios adquiriam existência oficial. Não era, porém, esta a designação inicial de tais documentos. Referiam-se umas vezes simplesmente como “carta”, tal como a generalidade dos documentos escritos, ou como “scriptum”, algumas vezes como “decretum”, mas a partir de meados do séc. XII divulga-se e generaliza-se a designação de “carta de foro”.
     Foro é, no entanto, uma denominação muito genérica, aplicada a realidades diferentes. Designa muitas vezes as rendas a pagar das propriedades rústicas e urbanas, e, com frequência, mais especificamente, a importância fixa ou “cânone” a pagar anualmente pelo domínio útil das terras, nos contratos de enfiteuse ou emprazamento, chamados também contratos de aforamento. Outras vezes, “foro” designa o estatuto social, jurídico ou fiscal de uma determinada classe ou grupo social, ou de uma determinada área ou sector: foro eclesiástico, foro de cavalei-ro, foro jurídico, foro de portagens. Muitas vezes aplica-se aos documentos de que nos estamos a ocupar, isto é, àqueles cujo assunto são as instituições municipais, mas designa tanto o documento em si como o conjunto ou uma parte das prescrições nele contidas, como a tabela das “portagens” ou o censo anual a pagar para o cofre régio.
Os documentos designados como “carta de foro” podem classificar-se em três categorias: as de alcance puramente agrário, individuais ou colectivas, que estabelecem as condições de exploração da terra e os ónus a que a mesma está sujeita; as que estabelecem o estatuto jurídico-administrativo das comuni-dades, contendo as bases da sua organização interna, e regulando as suas relações com o poder central ou com aqueles que dele partilhavam em alguns momentos; finalmente, as que definem mais pormenorizadamente as regras de funcionamento interno da comunidade, e, que na sua origem, resultam de uma compilação gradual de “costumes” ou, em latim, “consuetudines”, ou do registo das interpretações ou sentenças dos juízes, a partir daí utilizadas como norma ou referência paradigmática.
     Apenas os documentos incluídos na segunda e terceira categoria interessam, de um modo geral, para o estudo das origens dos municípios e se podem incluir no grupo dos documentos para que desde a terceira década do séc. XIV se generaliza gradual-mente a designação de foral, que hoje usamos e já era quase exclusiva nos últimos decénios do séc. XV. Aqueles que incluimos na segunda categoria são os forais breves, na Espanha designados como cartas pueblas ou cartas de poblacion – cartas ad populandum ou cartas de povoamento –, e é a eles que vulgarmente se alude quando se fala simplesmente em forais. Os da terceira categoria são vulgarmente designados entre nós como forais extensos e, em regra, aparecem em localidades onde já existiam forais breves.
     Os forais, e outros documentos relativos às instituições municipais dos primórdios da nossa história, encontram-se dispersos por vários arquivos, mas o maior número pode ser consultado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa. As principais séries que interessam à temática do presente estudo são os Forais Antigos, as Gavetas, os Forais Velhos de Leitura Nova, o Corpo Cronológico e as Chancelarias de vários reinados, mas sobretudo as de D. Afonso III, D. Dinis, D. Afonso IV, D. Pedro I e D. Fernando.
     Os Forais Antigos acham-se distribuídos por doze maços, organizados, em princípio, conforme a área geográfica a que dizem respeito. Os maços 1, 2 e 3 contêm a documentação relativa à Estremadura; os maços 4, 5, 6, 7 e 8 reúnem os diplomas correspondentes às Beiras; o maço 9 diz respeito ao Minho e Trás-os-Montes, mas o documento n.º 1 refere-se a Aguiar, junto a Viana do Alentejo; nos maços 10 e 11 encontram-se os forais relativos ao Alentejo; o maço 12 é constituído por vários documentos, mas sobretudo pelo códice resultante da junção dos vários cadernos onde se registavam as cópias dos documentos emanados da chancelaria de D. Afonso II, que não são apenas os forais, embora estes constituam uma boa percentagem, e, por isso, alguns autores recentes preferem a designação de Chancelaria de D. Afonso II, em vez da tradicional de Forais Antigos, maço 12, n.º 3, que se mantém neste estudo. Afim deste documento é o livro tradicionalmente conhecido pela designação de Forais Antigos de Santa Cruz de Coimbra, que basicamente resulta da intenção de passar a limpo, num só volume, os documentos contidos nos diversos cadernos, de cuja reunião resultou, como se disse, o códice anteriormente mencionado.
Ao contrário do que sucede com os Forais Antigos, nas Gavetas apenas uma pequena percentagem dos documentos é atinente aos municípios, e reduzido é o número de forais aí contidos.
     Nos livros das Chancelarias, encontram-se numerosos documentos constituídos por forais ou outros actos relativos ao povoamento e à vida dos municípios, mas embora haja algumas confirmações e cópias de forais anteriores, a maior parte diz respeito a factos ocorridos nos respectivos reinados.
     O mesmo se pode dizer, em menor escala, em relação a outros núcleos, como o Corpo Cronológico, ou os livros chamados dos Bens dos Próprios dos Reis e Rainhas, os Livros de Tombos, sem omitir os que constituem a Leitura Nova, merecendo citação especial o volume dos Forais Velhos de Leitura Nova, em que houve a intenção de recopiar todos os forais dos séculos XII, XIII e XIV, e cujo interesse principal está no facto de apenas conhecermos alguns desses diplomas através da cópia aí inserida.
     Textos de forais encontram-se também dispersos em colecções de documentos, ou em cartulários de várias instituições, recolhidos no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, como é o caso das mitras diocesanas, das ordens militares e de outras corporações eclesiásticas, citando-se como exemplo os Livros das Escrituras, da ordem de Cristo, o Livro dos Copos, da Ordem de Santiago, o Livro Preto e o Livro das Kalendas, da Sé e do Cabido de Coimbra. Pela mesma razão se encontram documentos com interesse noutros arquivos, que reúnem fundos de várias proveniências, como acontece com a Biblioteca Nacional de Lisboa, entre outros para os documentos do mosteiro de Alcobaça, o Arquivo da Biblioteca Pública Municipal do Porto, para a documentação relativa aos foros da cidade, ou o Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, de que foi publicado um tombo com importante documentação da ordem de Avis. Alguns Arquivos Distritais possuem documentação de elevado interesse, onde se repescam alguns forais, como no Liber Fidei do A. D. de Braga, para não falar dos municípios onde têm havido uma louvável preocupação de conservar com esmero os antigos pergaminhos.
     Independentemente do facto de se enquadrarem dentro das balizas cronológicas do tema, ao preparar a elaboração deste trabalho, tive o cuidado de conferir o maior número de documentos originais ou de versões mais antigas, especialmente no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, onde compulsei, e com interessantes resultados práticos, em ordem ao estabelecimento de alguns pormenores, como datas, localizações geográficas, e certos problemas de interpretação, todos os documentos citados no texto: Forais Antigos, incluindo o códice da Chancelaria de D. Afonso II, Forais Antigos de Santa Cruz, Gavetas e Forais Velhos de Leitura Nova.
    
     Felizmente, a maior parte da documentação relativa a esta época encontra-se publicada em diversas colectâneas, ao alcance dos estudiosos. O volume Leges et Consuetudines dos Portugaliae Monumenta Historica inclui a maior parte dos forais outorgados até ao fim do reinado de D. Afonso III. Abiah Elisabeth Reuter procurou reunir o conjunto da documentação outorgada por D. Afonso Henriques, em Chancelarias Medievais Portuguesas, embora a sua obra, de excepcional interesse, viesse a ser suplantada pela publicação do vol. I dos Documentos Medievais Portugueses, preparada por Rui de Azevedo, razão porque é esta a obra que passaremos a citar, embora colhêssemos na primeira algumas observações pertinentes. A publicação dos Documentos Medievais Portugueses foi continuada com os Documentos de D. Sancho I. Para o reinado de D. Afonso II, a única publicação disponível continua a ser a dos Portugaliae Monumenta Historica. Outras colectâneas, onde, no meio de vária documentação, se publicaram também os textos de alguns forais, serão oportunamente citadas no decorrer deste trabalho.

     4. Balizas cronológicas e metódicas

     As balizas cronológicas do presente trabalho – de 1055 a 1223 – correspondem efectivamente a um período fundamental na história do nosso municipalismo, mas não foram previamente delimitadas, tendo-se tomado como programa o estudo diacrónico daqueles diplomas, a começar pelos mais antigos, e caminhando até onde fosse viável, embora antecipadamente parecesse oportuno abranger o reinado de D. Afonso II, por se lhe dever, através das confirmações, o mais antigo registo de grande número dos forais anteriores. O andamento da investigação levou a concluir que efectivamente ainda nesse reinado houve algumas iniciativas com algumas consequências importantes, no âmbito da dinâmica municipal, como a outorga de forais do tipo de Numão a algumas áreas situadas a norte do rio Douro.
     Puseram-se de parte os forais extensos da família de Castelo Rodrigo, porque, além de o seu estudo exigir uma metodologia própria, independentemente da data da sua outorga inicial, só mais tarde esses territórios seriam integrados em Portugal e os respectivos diplomas confirmados pelos nossos monarcas. Citar-se-ão normalmente os forais outorgados após essa data, até 1279, e só excepcionalmente os de algumas datas posteriores, apenas com o objectivo de ilustrar a irradiação alcançada pelos diferentes paradigmas.
     Houve a intenção de contemplar o maior número possível de aspectos, na medida em que a documentação o facultasse, e foi possível agrupar esses aspectos em quatro grandes campos: instituições municipais, administração da justiça, sociedade, economia e fiscalidade.
     A metodologia adoptada dispensa-nos da apresentação preliminar de um elenco terminológico. Procuraremos cingir-nos exclusivamente ao vocabulário de cada diploma, entendendo as palavras no sentido que lhes dão os textos ou que o seu enquadramento sugere. Se alguma vez, por nossa iniciativa, usarmos um termo em vez de outro, ficará claro esse facto e a razão porque o fazemos. É esse o motivo porque nunca usaremos a palavra concelho, no sentido moderno, para designar um município, precisamente para não desvirtuar o significado com que é utilizada nos diplomas. Em contrapartida, usaremos frequentemente a palavra município para designar estas autarquias desde meados do século XI até ao início do século XIII, englobando o território, as gentes e as instituições, embora o vocábulo, registe-se, nunca apareça na documentação. Empregaremos indistintamente as palavras foral, carta de foro, e outras mais genéricas, embora a primeira seja de introdução mais tardia..
     Para uma melhor identificação, far-se-á a cartografia das áreas correspondentes a cada grupo estudado, utilizando, como ponto de partida, o mapa com a actual divisão administrativa, de modo a dar uma ideia não só da localização, mas também, quando for o caso, da expressão territorial dos vários municípios, embora os espaços não correspondam rigorosamente, porque, no decurso dos séculos, os termos ou limites de muitos concelhos, mesmo quando se  mantiveram as denominações, foram alterados de várias formas. As datas de fundação ou de outorga dos forais dos municípios assinalados nos mapas genealógicos e nas cartas geográficas, ultrapassam as barreiras cronológicas a que se refere o estudo de base, o que, sem a pretenção de exaustividade, se destina a permitir a avaliação do aro de influência dos vários paradigmas.
     Apresentaremos no fim uma síntese das mais importantes conclusões a que tivermos chegado. A leitura prévia dessa síntese pode servir de introdução para quem se esteja a iniciar nesta matéria.

     Post-scriptum

     O tema é árduo e difícil, de tal modo que não teria ousado abalançar-me ao seu estudo, se não me tivesse sido proposto pelo Professor Doutor Humberto Baquero Moreno, nem seria capaz de o conduzir a bom termo, se não fosse o encorajador apoio de tão generoso e seguro orientador, a quem me sinto obrigado.
     Em post-scriptum, manifesto igualmente o meu reconhecimento aos outros membros do júri, a cuja apreciação este trabalho foi submetido como dissertação final do curso de mestrado, recebendo a classificação unânime de Muito Bom: a Professora Doutora Maria Helena da Cruz Coelho, que, com as suas criteriosas observações contribuiu para o aperfeiçoamento da obra, e o Professor Doutor Luís Adão da Fonseca. Ao amigo Doutor António Martinez Coelho, de Ourense, agradeço especialmente o ter-me facilitado o acesso à bibliografia espanhola.

 
S I G L A S

A.D.B.         = Arquivo Distrital de Braga
A.H.D.E.     = Anuario de Historia del Derecho Español
A.N.T.T.      = Arquivos Nacionais - Torre do Tombo
Chanc.         = Chancelaria
D.D.S.         = Documentos Medievais Portugueses. Vol. II. Documentos de D. Sancho I. Universidade de Coimbra,
                       1979.
D.M.P.-I      = Documentos Medievais Portugueses. Documentos Régios. Vol. I (Conde D. Henrique, D. Teresa e
                       D. Afonso Henriques). Lisboa, 1962.
F. A.            = Forais Antigos
F. V.             = Forais Velhos de Leitura Nova
G. ou Gav.   = Gaveta
P.M.H.-L.C. = Portugaliae Monumenta Historica. Leges et Consuetudines. Lisboa, 1856.