FORAIS
A SUL DO RIO DOURO
Durante o período em que esteve à frente do Condado Portucalense, não parece que D. Teresa tenha seguido uma linha programática claramente definida, no âmbito da criação de novos municípios. Talvez por causa das múltiplas ausências no período anterior, só a partir de 1121 tomaria algumas iniciativas neste domínio. No número dessas iniciativas, contar-se-á a “regularização” da carta de foro de Azurara da Beira, possivelmente redigida ou pelo menos concluída em data posterior ao óbito do seu mandante, a outorga de dois forais na área sudeste do território, os de Viseu e de Ferreira de Aves – a que se ajunta um outro, de outorga senhorial, o de Sernancelhe –, de um nas margens do Douro, o de S. Martinho de Mouros, e, finalmente, a norte, do de Ponte de Lima. Deste ocupar-nos-emos ao estudar os “burgos e póvoas”.
1. Arganil, 1114
Deve-se ao Bispo de Coimbra o primeiro foral elaborado sob o governo de D. Teresa. É com efeito em 1114 que D. Gonçalo Pais outorga carta de povoação aos moradores de Arganil, documento que apenas se conhece através de um aditamento feito no século XIII ao Livro Preto da Sé de Coimbra, circunstância que naturalmente impede de saber até que ponto o texto recebido corresponde ao original. É clara a existência de adendas ou interpolações, mas não é fácil distinguir todos os trechos primitivos das achegas posteriores.
Assinale-se a presença do concelho de Seia no acto da outorga deste foral, dado tanto mais importante quando sabemos que, desse município, o único foral antigo que chegou aos nossos dias tem a data de 1136.
1.1. Organização administrativa.
A existência das instituições municipais está anunciada naquela passagem onde, para comprovar um delito, se exige a inquirição levada a cabo por três homens-bons, e revela-se claramente numa outra, que se autodesigna como adenda, introduzida pelos próprios moradores, que nela tomam a palavra – até aí o Bispo falava no singular – para, colectivamente, se comprometerem a acrescentar ao tributo da jugada um sesteiro por cada boi, em troca do reconhecimento do direito a uma intervenção decisiva na eleição do alcaide.
1.2. A sociedade.
Os habitantes de Arganil repartem-se entre cavaleiros e peões. Os cavaleiros estão isentos dos ónus tributários que recaem sobre os peões, e a isenção pode estender-se a mais uma herdade adquirida a outro cavaleiro ou a duas outras adquiridas as peões. Para que estes passem a fruir de idêntico privilégio, é suficiente possuir cavalo ou até, mais simplesmente, acompanhar o senhor no fossado com uma égua sem albarda; se, aliás, um peão adquirir outra "fogueira" ou casal, o conjunto dos seus bens continuará a considerar-se como uma só unidade para efeitos tributários. Todos, cavaleiros e peões, estão obrigados a obedecer a “mandado” ou apelido até lugar de onde no mesmo dia possam voltar a casa.
1.3. Economia e fiscalidade.
A população local vive da agricultura e, em certa escala, da caça, tal como várias comunidades que já estudámos. A tributação é um pouco mais benévola que a de outras localidades: a jugada é de um quarteiro anual por cada bovino utilizado nos trabalhos da lavoura, e quem não pagar jugada (por não ter animais para o trabalho), dará meio “aredel” ou arrátel (de cereal); do vinho entregar-se-á a décima parte, desde que o vinhedo tenha cinco anos. Pela actividade venatória, o imposto (“condado”) é de meio lombo de cada peça de caça grossa (apanhada “com armas”), e de um por cada quinze coelhos capturados “de morada”. A referência a outros tributos, a “parada” e a “carne”, insólitos na área de Coimbra e vulgares na margem direita do rio Douro, especialmente na terra de Panóias, tanto poderá atribuir-se ao documento original, o que só poderia explicar-se como uma influência nortenha, devida às origens do Bispo de Coimbra, como poderá resultar de uma interpolação mais tardia, também por influências setentrionais.
1.4. Propriedade.
Características da época são as restrições impostas ao direito de propriedade: por ocasião da venda de uma herdade o palácio receberá um de cada cinco moios (do preço), cláusula destinada a perpetuar o reconhecimento dos direitos senhoriais.
MAPA TRIBUTÁRIO
DESIGNAÇÃO | TRIBUTOS |
Agricultura: |
|
1 jugo de bois | 2 quarteiros de pão terçado |
1 boi | 1 quarteiro |
vinho (após 5 anos) | 1/10 da produção |
linho | 1 manelo de cada 3 feixes |
Outros, “de morada”, se não der jugada | 1 arrátel (“aredel”) |
Caça ou “condado” |
|
“com arma” | 1/2 lombo de cada presa (“venatu”) |
“de morada” | 1 de cada 15 coelhos |
Parada | 1 pão de 1 alqueire e1 almude de cevada |
“Carne” | 1 vaca no valor de 3 moios |
| 1 porco no valor de 3 moios |
1.5. A justiça.
Embora
Arganil dependa do Bispo de Coimbra, as disposições penais do foral revelam
que, pelo menos em grande parte, a administração da justiça está a cargo do próprio
município, e por conseguinte do concelho: com efeito, não só se fixam (em
um terço) as parcelas das coimas a aplicar aos delitos de homicídio e de rouso,
e se determina o procedimento a adoptar em caso de furto (o ladrão paga o duplo
da coisa roubada, nas duas primeiras vezes, e à terceira é espoliado de todos
os bens e expulso), mas também se estipula que, na ocorrência de outros
delitos, estes apenas se consideram comprovados após a inquirição levada a cabo
por três homens-bons. A conversão das flagelações em moios, “em Santa
Comba” revela a sobrevivência de uma tradição local.
2. S. Martinho de Mouros, 1121
O mais antigo foral de D. Teresa é o de S. Martinho de Mouros, datado de 13 de Março de 1121, mas apenas conhecido através de uma versão posterior, de 11 de Junho de 1312. Neste ano, o juiz, dois vereadores e três tabeliães do lugar, reunidos na presença e por convocação do meirinho, na igreja local, reduziram a escrito os seus usos e costumes, incluindo a tradução em vernáculo do foral teresiano e várias disposições ditadas pelo corregedor. Esta forma de registo do foro pode justificar o estropiamento de uma ou outra passagem: sirvam de exemplo a expressão “per meyo”, em vez de “premeiro” (= primeiro), e o caso, mais flagrante, da subscrição, em que se juntam, no mesmo ano de 1121, D. Teresa, D. Henrique e o infante D. Afonso!
S. Martinho de Mouros foi uma das povoações conquistadas aos sarracenos, no tempo de Fernando Magno, por Sesnando Davides, e, como tal, integrada no território confiado ao seu governo (este documento fornece, pois, uma importante informação, que tem sido descurada, para o esclarecimento das fronteiras do território a que se estendia o domínio do célebre alvazir).
Embora de índole mais breve, o foral de S. Martinho de Mouros, até porque recolherá normas elaboradas na mesma época, avizinha-se dos forais do grupo de S. João da Pesqueira.
2.1. Organização administrativa.
Hierarquicamente, o concelho depende directamente do poder central (do condado de Coimbra): “que vos quededes do alvazil”. Localmente, esta entidade, é representada pelo mordomo, especialmente para a defesa dos interesses económicos ou fiscais (para tutelar os interesses do concelho, é-lhe proibido “meter hi as redes suas senom as redes de todo o concelho premeyro”).
O concelho representa os interesses comunitários: é o proprietário das pesqueiras, e, naturalmente, compete-lhe incrementar a justiça e a paz no interior da povoação. Embora o foral seja quase omisso em questões de justiça, uma das cláusulas estabelece que “non aia hy carytel”, isto é, que não haja aí intervenções imediatas e directas do poder central em questões de justiça, e que “nem tomem vosso gaado sem juizo dyreito”, ou, por outras palavras, que não se façam apreensões de gado (penhoras, etc.) senão após o devido julgamento, segundo as normas do direito. Este julgamento devia ser feito, por conseguinte, pelo órgão máximo da autoridade local, o concelho.
2.2. A sociedade.
A sociedade local, em S. Martinho de Mouros, é constituída por duas classes de indivíduos: uns, proprietários de herdades, que só dependem do poder central; outros, que vivem e trabalham nas herdades alheias, servindo apenas os seus proprietários. Não se utiliza, porém, expressamente a classificação em “maiores” e “menores”, como sucede noutros documentos.
2.3. Direito de propriedade.
O foral determina que as herdades sejam livres e "engeas", isto é, "ingénuas" ou isentas de qualquer ónus de servidão pessoal, de tal maneira que, por falecimento do proprietário, se transmitem, sem quaisquer encargos, aos filhos ou legítimos herdeiros (que faziam as partilhas, lançando sortes sobre os vários lotes, testemunha o foral). No entanto o direito de propriedade sofre uma limitação, para efeitos de venda: quando o possuidor quiser vender as terras que estão sujeitas ao pagamento da ração, a seguir referida, metade da herdade passa a el-rei, e a outra metade poderá ser comprada, livre de encargos, por qualquer interessado.
2.4. Economia e fiscalidade.
A economia de S. Martinho de Mouros baseava-se na pesca e na agricultura (incluindo a criação de gado). Cultivavam-se os cereais, a vinha e o linho. A pesca, facultada pela localização de S. Martinho nas margens do Douro, fornecia, em primeiro lugar, lampreias e sáveis. Havia aí vários canais e pelo menos uma pesqueira, que já vinha de antigos tempos.
O carácter alodial das herdades não as isentava do pagamento de impostos. Estavam sujeitas, com efeito, ao pagamento de direituras – três quarteiros de cereal, já que de mais um dispensara-os o conde D. Henrique, “per remedio de sa alma” – e de rações: a quarta parte do vinho e a sexta parte do linho.
Também sobre a pesca impendia a obrigação de pagar a dízima, ajuntando-lhe mais dois sáveis e duas lampreias; se a captura se fizesse nos canais, além de dois peixes, escolhidos entre os melhores, liquidava-se a ração (a dízima, segundo parece) em duplicado.
Finalmente
– e para aludir a um outro ponto de contacto com o grupo de S. João da
Pesqueira, embora em direcção diferente – registe-se que, após o matrimónio, os
recém-casados estavam isentos da obrigação de prestar serviço ao rei
durante um ano.
3. Viseu, 1123
Os forais outorgados por D. Teresa a Viseu (1123) e Ferreira de Aves, assim como o outorgado a Sernancelhe por João Viegas e Egas Gosendes (1124), aparentam-se com os que foram outorgados na área de Coimbra, nos últimos anos do conde D. Henrique.
O foral outorgado a Viseu, em Maio de 1123, têm como destinatários expressos os cavaleiros vilãos (cives milites) da localidade. Este endereço é tanto mais expressivo, quanto é precedido de uma consideração justificativa: “videns et cognoscens fidelitatem et bonum servicium in homines de Viseo”, o que fornece alguma razão para pensar que a ocasião próxima deste foral estava ligada a perturbações ocorridas na área sul do território. Por outro lado, o foral esteve na origem de uma profunda alteração no panorama fiscal na terra de Viseu, a qual motivaria uma inquirição, aí ordenada por D. Teresa e pelo conde Fernando Peres, em 1127, que oferece uma valiosa panorâmica sobre a posse da terra naquela área, assim como sobre o número de cavaleiros e de jugários ou jugadeiros, entre os quais, na sua maior parte, a mesma se repartia. Através de uma área que em grande parte coincide com o actual concelho, registam-se 172 casais que deixaram de pagar jugada. Uma centena destes casais pertence a cavaleiros de nível superior, sobressaindo, em relação ao número de casais isentos, Vermudo Goterres com 20 casais, Gonçalo Pais com 12 e meio, e os restantes com um número que varia entre seis e um. Os outros setenta e dois casais e meio isentos pertenciam a “cavaleiros menores e peões”.
3.1. Organização administrativa.
Quanto à organização interna da comunidade, neste momento, sabemos muito pouco. As parcas informações do diploma garantem que o vigário do rei, se algum problema se levantasse, interviria apenas quando os moradores não quisessem resolver as querelas entre si, o que naturalmente implicava a existência ou a criação de um órgão local próprio para a administração da justiça. Por outro lado, uma carta de isenção passada a favor de um um tal Gauviti e filhas, relativa à “vila” de Marzovelos, em Outubro de 1125, em terra de Viseu, isenta-o da jurisdição do juiz, do mordomo e do saião “ut nullus homo nec iudex nec maiordomus nec saionem non videas de hodie die pro nulla causa”.
3.2. A sociedade.
De facto, o município, além dos cavaleiros – que gozavam da isenção fiscal em relação a todas as suas herdades, onde quer que se situassem, a qual se mantém, mesmo após a morte do cavalo, até à aquisição de outro, no prazo de um ano, e se prolonga durante a velhice e, para além do óbito, a favor da viúva continente e dos filhos órfãos – alberga outras qualidades de pessoas: os jugários, obrigados ao pagamento de um tributo mais reduzido que o tradicional e por isso designado de “jugada nova”; os mercadores, que, tal como sucedia nos burgos já estudados, pagam um censo fixo anual; e os clérigos, que beneficiam de um privilégio fiscal idêntico ao dos cavaleiros.
Registemos ainda que expressamente se liberta a celebração do matrimónio do pagamento de qualquer “offrecionem”.
3.3. Justiça
A
carta de foro é, de qualquer modo, muito breve e totalmente omissa no que
respeita a normas de justiça, e, em particular, no respeitante à fixação das
coimas. Por esse motivo é que D. Afonso Henriques, em data desconhecida, mas
que deve andar pelo ano de 1136, quando circuitou pela zona e assinou outros
forais (Seia, Penela, Arganil), onde há disposições semelhantes, outorgou nova
carta de foro, que, em várias cláusulas, não faz mais que completar e tornar
mais clara a primeira, confirmando a conclusão de que em Viseu existia uma
organização municipal idêntica à das outras localidades da área de Coimbra. O
estudo dessa carta far-se-á na devida altura.
4. Ferreira de Aves [1123-1126]
Com Ferreira de Aves deu-se uma situação semelhante à de Viseu. Essa, aliás, é a única explicação para que o foral apareça com a assinatura de D. Teresa e ao mesmo tempo com a data de 1136. Conhecemos o documento através de um apógrafo do século XIII e por isso, mais uma vez, não podemos recorrer à esclarecedora análise material do suporte originário.
Possivelmente, pelas mesmas razões, e na mesma altura (que coincide com a data transmitida no documento) D. Afonso Henriques (ou o notário, por sua ordem) acrescentou o foral de D. Teresa, utilizando o mesmo pergaminho e aproveitando o texto já escrito. Ou porque o resultado desta composição não ficou muito claro, ou por inépcia do escriba que fez a cópia actualmente existente, o teor chegou até nós com a data actualizada, mas apenas com a assinatura do outorgante da primeira fórmula, isto é com a data correspondente à reforma de D. Afonso Henriques mas com a subscrição de D. Teresa!
Embora não se possa ser demasiado apodíctico, percebe-se a existência de duas partes distintas no documento, podendo estabelecer-se uma cesura, mais ou menos, a meio do texto, parecendo-me o mais indicado localizá-la no início do parágrafo que se refere às coimas aplicáveis ao homicídio e ao rouso. Não só são distintos o ritmo e o estilo, mas até se encontram diversas repetições e disposições diferentes, se não contraditórias, embora relativas ao mesmo assunto. É possível que mesmo na primeira parte haja algumas alterações ou interpolações, como sucederá provavelmente quando se diz adoptarem-se as medidas de Linhares.
As cláusulas da primeira parte do foral de Ferreira de Aves decalcam as do foral de Tavares.
4.1. Organização administrativa.
Acima do município está o senhor, mencionado no entanto apenas a propósito da recolha de impostos e coimas. Em Ferreira de Aves o senhor, além dos impostos, recebe, por regra, metade da importância das coimas.
O concelho recebe a outra metade das coimas.
A recordar ainda os antigos direitos dominiais sobre a propriedade, uma cláusula estipula que o vizinho que pretender emigrar paga, ao senhor, um bragal, após a venda da herdade, tal como sucedia em Tavares.
4.2. A sociedade
A sociedade local integra igualmente moradores com diversos estatutos, a viver dentro ou fora da vila: peões e cavaleiros vilãos.
É também de três anos o prazo que se dá aos cavaleiros, após a morte ou perda do cavalo, para adquirirem outro, sem perderem os seus privilégios.
4.3. A justiça.
Problemas de justiça que ultrapassem os simples ferimentos são julgados por um colégio constituído pelo juiz e cinco homens-bons. Ao juiz cabe a décima parte das receitas resultantes da sua actividade: “aprehendat de toto iudicato sua X.ª”.
O saião é apenas referido na segunda parte do foral, em cláusulas que devem corresponder à reforma de 1136.
4.4. Fiscalidade.
A tabela dos impostos que oneram os peões é coincidente.
MAPA TRIBUTÁRIO DE TAVARES E FERREIRA DE AVES
ARTIGOS | TAVARES | FERREIRA DE AVES |
Agricultura: |
|
|
– com um boi | 3 sesteiros | 3 sólidos [?] |
– com mais de um boi | 3 sesteiros | 3 quarteiros |
– vinho, a partir de 5 quinales | 1 puçal | 1 puçal |
– linho, a partir de 4 manelos | 1 manelo | “alio sic” |
Caça: |
|
|
– geral | 1 lombo, de “peias” | 1 lombo, de veado morto em“peias ou baraça” |
– porco (javali) | 4 costas | 4 costas |
– urso | 1 mão | 1 mão |
– coelhos, desde 3 noites no monte, de “apeiro” | 1 coelho | 1 coelho |
Mel | ½ canada | ½ alqueire |
4.5. A justiça.
Paralelismo idêntico se verifica entre os valores fixados para as diversas coimas, em Tavares e Ferreira de Aves:
DELITOS E COIMAS
DELITOS |
TAVARES |
FERREIRA DE AVES |
Homicídio do juiz ou do mordomo |
100 moios |
|
Homicídio simples |
50 moios |
50 moios |
Rouso |
50 moios |
50 moios |
Ferimentos |
5 moios |
[composição] |
Uso de armas |
perde as armas |
perde as armas |
5. Sernancelhe, 1124
O foral de Sernancelhe constitui um caso especial, a merecer atenção, por se tratar do primeiro foral de outorga senhorial laica, na história do nosso municipalismo. Foi outorgado por Egas Gozendes e João Viegas, possivelmente senhor, um, e prestameiro, o outro, daquela área.
É natural que tanto a implantação geográfica – Sernancelhe situa-se na periferia nordeste do distrito de Viseu, numa zona que confinava com os municípios do grupo de S. João da Pesqueira e de Ribacoa – como a sua origem senhorial se repercutissem no conteúdo desta carta de foro. Se os contactos e a circulação das gentes influenciavam os costumes e, por conseguinte, o direito local, também os interesses dos outorgantes pesariam na elaboração de algumas cláusulas, designadamente na fixação de contribuições e coimas, uma vez que as condições mais favoráveis atraem os povoadores e acabam, no fim de contas, por aumentar as rendas, ou pelo menos constituem uma compensação relativamente aos incómodos relacionados com a vida numa região de fronteira, em época ainda de grande instabilidade.
Apesar de, à primeira vista, o texto do foral não levantar as mesmas dificuldades de datação dos forais anteriores, a verdade é que a atenta análise do seu teor coloca os mesmos problemas. Uma leitura crítica descobrirá, pouco a pouco, sucessivos “estratos”, correspondentes a várias fases de elaboração, distribuídas por épocas diversas.
O facto de não ter chegado até nós o original – conhecemos o foral através de uma pública forma posterior e da confirmação registada na chancelaria de D. Afonso II – inviabiliza mais uma vez o contributo decisivo que a este estudo poderia dar a análise dos suportes materiais do documento, concretamente a tinta, a letra e a distribuição visual do texto.
Não se trata de interpolações, em sentido estrito, mas de um processo em que gradualmente se vão reduzindo a escrito, utilizando o pergaminho do velho diploma, as modificações ou inovações que no correr dos tempos afectam o seu conteúdo, conforme o direito local vai evoluindo, as quais acabam por receber globalmente a confirmação da autoridade central, quando a carta de foro é submetida à confirmação de D. Afonso II.
Embora seja possível que, dado este processo de elaboração, uma ou outra interpolação apareça entre as primitivas cláusulas, ou que, pelo contrário, alguma das antigas cláusulas se ache agora deslocada do primitivo contexto, no conjunto parece que o dispositivo da carta inicial devia terminar na disposição onde se equipara ao cavaleiro o peão que tiver uma égua e as armas adequadas. Na cláusula seguinte aparecem os moradores a falar na primeira pessoa, em nome próprio: “si unus ex nobis (...)”. Este procedimento, com os vizinhos a exprimirem-se na primeira pessoa, ou mesmo a dirigirem-se ao senhor, na segunda pessoa, repete-se, seguidamente, em várias outras frases, como em “contra vestros inimicos ibimus vobiscum”.
Pertencerão, por conseguinte, a uma segunda etapa da elaboração deste documento, os artigos que vão desde o acima referido (onde se equiparam aos cavaleiros vilãos os peões possuidores de égua) até àquele onde se fixam os tributos ou obrigações dos mesteirais. Estes podem datar da mesma época ou de época posterior e serem ou não coetâneos das últimas cláusulas, que versam questões de justiça.
Pode mesmo perguntar-se se todos os artigos que individualizamos como integrando a primeira parte serão de facto coetâneos, pois há aí duas listas de coimas e a segunda, que se inicia com o parágrafo alusivo à violação do domicílio, parece de uma data diferente, não tanto por estar isolada da primeira através de um parágrafo que trata de outra matéria, mas sobretudo porque o valor das coimas atinge quantitativos desproporcionados, se tivermos em conta os da primeira lista. Já nos clausulados que, segundo a distribuição que acima fizemos, constituem a segunda e a terceira parte, se encontram repetições e divergências em relação à primeira, assim como novos elementos que noutra documentação apenas surgem em época mais tardia, como sucede com a referência aos besteiros e aos mesteirais.
Neste momento apenas nos interessa analisar o conteúdo das cláusulas que constituem a primeira parte, por serem as que respeitam à época de que se trata neste capítulo, e nessas descobrimos vários pontos de convergência com os outros forais da mesma época e área geográfica.
5.1. Organização administrativa
O senhor arrecada metade das coimas e impostos.
O foral não explicita as funções do concelho, mas naturalmente competia-lhe velar pelos interesses comuns e, entre eles, pela boa ordem e paz social, dispondo até de algumas receitas próprias. Na versão primitiva do foral, sabemos que recebia metade das coimas devidas pelo crime de homicídio e das cauções ou fianças, quando o réu era condenado; havia também padrões de medidas próprias do concelho.
Existia um juiz, que decidia as causas que, por norma, eram precedidas da apresentação de fiança.
5.2. A sociedade.
A sociedade local é fundamentalmente constituída por cavaleiros vilãos e peões. Os cavaleiros gozam da isenção tributária, mesmo em relação às portagens e às herdades anteriormente tributárias que comprarem aos peões. Há um período de três anos, após a morte ou a perda do cavalo, enquanto não adquire outro, durante o qual o cavaleiro mantém o seu estatuto privilegiado. À categoria podem ascender também os peões que possuam cavalo ou égua e as armas apropriadas.
5.3. A justiça.
Admite-se a luta como meio de “prova” em pleitos contenciosos. O vencido paga um bragal como imposto de justiça; aquele que, já em campo, desistir, antes de iniciar a pugna, dá apenas metade. O elenco das coimas é de todos os da área o mais extenso, se é que todos os itens faziam parte da tabela inicial:
DELITOS E COIMAS
DELITO | COIMA |
violação de igreja sagrada | 300 moios |
violação de igreja não sagrada | 150 “ |
violação do domicílio | 60 “ |
ultraje (esterco no rosto) | 60 “ |
homicídio | 50 “ |
rouso | 50 “ |
agressão com arma | 50 “ |
mutilação – olho (cada) | 50 “ |
“ – mão (cada) | 50 “ |
“ – nariz | 50 “ |
“ – orelha | 15 “ |
“ – dedo polegar | 10 “ |
“ – dedos (outros) | 5 “ |
“ – dente (cada) | 5 “ |
uso indevido de armas | perde arma |
adultério | * |
5.4. Fiscalidade.
A
tabela de impostos, que impendem sobre os peões, segue o mesmo esquema
das outras que já conhecemos, embora os quantitativos sejam diferentes:
MAPA TRIBUTÁRIO DE SERNANCELHE
ARTIGOS | IMPOSTOS |
Agricultura, |
|
com um boi ou mais | 1 quarteiro (1 teiga de trigo e 2 teigas de “segunda” |
vinho, a partir de5 quinales | 1 puçal |
linho e legumes | nada |
Caça |
|
de “peia” – porco | 2 costas |
– outros | 1 lombo |
coelho, a partir de 4 dias no monte | 1 coelho |
“sogeira” | nada |
caça “de lancea et de fossa” | nada |